quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O grande espetáculo da realidade


Como ocorria todas as semanas, mais uma vez a cidadezinha se reunia ao redor do coreto da praça. Os moradores daquela quase vila esperavam sempre ansiosos por aquele encontro noturno. Afinal, em que lugar pelas redondezas havia uma apresentação semanal como aquela? Fato é que todos se sentiam privilegiados. Interessantes eram os dizeres da faixa de pano que ficava sobre o palco improvisado: “Aqui representam os criadores da realidade.” O curioso é que nas ruelas as pessoas não pareciam tê-la lido bem assim. Elas sempre perguntavam umas as outras: “Você vai à praça ver a realidade?” A resposta era imediata: “Como poderia não ir? Como se tivesse algo melhor para fazer.”

Hora marcada, certinha, subia o apresentador:

- Caros munícipes, boa noite! Estamos felizes com sua presença para mais um capítulo da apresentação da realidade.

Todos aplaudiam calorosamente...

Poucos não haviam se esquecido do porquê da criação daquela espécie de espetáculo. No início, os dramaturgos gostavam de escrever peças coesas, progressões coerentes de capítulo a capítulo com histórias cheias de peripécias, tragédias, humor... Com o tempo, a audiência diminuiu. Muitos estavam enjoados de ver os mesmos papéis, apenas transmutados nos diferentes rostos e nomes das personagens.

Os dramaturgos pensaram:

“Vamos fazer uma peça sem script, na qual cada um será ele mesmo, pelo menos, aparentemente. Colocamos os atores no palco e não lhes damos um papel, e sim, um perfil. Cada um terá que desenvolver sua própria história. Um será o mocinho, outro o vilão, uma a santinha, outra a tentação, um o líder, outro o capacho e por aí vai... Vamos dar o nome de ‘apresentação da realidade’.”

Foi um sucesso! O espetáculo era certeza de praça cheia. Ao fim, as pessoas se regozijavam, dizendo:

- Como isso engrandece o nome da nossa cidade!

No entanto, para a surpresa dos empresários do negócio, a multidão foi diminuindo semana após semana. Foi quando um gênio da dramaturgia local disse:

- Vamos criar um “semi-script”. Colocaremos todos os atores e atrizes numa situação inicial na qual deverão desenvolver suas tramas a partir de ações irracionais e instintivas. Depois, pediremos que cada um, após cada ato, justifique superficialmente suas razões.

Os empresários não erraram por aceitar a proposta. Todos os recordes de público foram batidos. Entre todos os espectadores só havia um sentimento: a alegria por poder compartilhar com os atores, que agora eram pessoas comuns, a verdade nua e crua.

Foi um reboliço na cidade. Só se ouvia nas esquinas, nos bares, na escola, no hospital e até na prefeitura, uma fofoca institucionalizada: “Você viu aquele sujeito? Que sujeitinho não é?” Meses depois, crianças, jovens, adultos e velhos, homens ou mulheres já não acreditavam que havia realidade fora da pracinha. Eles estudavam de mentira, trabalhavam de mentira, dormiam de mentira, comiam de mentira, amavam-se de mentira... A verdade só podia se encontrar e se realizar na famosa “apresentação da realidade”. Além disso, muitos passaram a imitar os perfis de seus atores preferidos. É inimaginável quanta coisa instintiva e sem sentido começou a fazer parte da vida social da até então pacata comunidade.

Certo dia, enquanto todos assistiam a mais um espetáculo, alguém do meio da multidão gritou:

- Vocês se alegram por terem inventado e participado de algo original? Pois estes empresários e dramaturgos são uns copistas medíocres; não inventaram nada, só trouxeram para nós aquilo que já era espetáculo há muito tempo na grande cidade do outro lado da lagoa. E todos sabem o que aconteceu com ela; a metrópole falida.

No palco houve silêncio, entre o público pavor... Passados alguns instantes, alguém bradou:

Tirem esse louco daqui! Vamos interná-lo, pois está variando! Coitado, deve ser um asceta que não conseguiu colocar os pés no chão...

Expulso o baderneiro, todos se assentaram e calmamente retornaram para a realidade...

Eu, que por lá passei, conto um fato real e sem pretensão alguma. Porém, se o leitor preferir não acreditar, que pense: “Qualquer coincidência com a semelhança é mera realidade.” E tenho dito.

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Um comentário:

  1. Oi!!! Te achei, sem querer, no mural do "recanto...", onde tb posto uns contos e uns poemas...que um dia serão tão bons qto os teus!!! Li, esse mesmo conto... adorei tudo, sobretudo o final (“Qualquer coincidência com a semelhança é mera realidade.”) perfeito... e li o texto do mural...que vai diminuindo...diminuindo... é uma pena, vc estar em Minas tão longe de são paulo..rsrsr enfim...entre tb no meu blog (tenho 2 um de conto o outro de poesia):
    contos: http://www.contosquecontoh.blogspot.com
    poesias:
    http://www.virgemh.blogspot.com

    Nossa!!! Falei demais...Fui... Bjs

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