segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sobre deuses e vovós...*


Reza uma velha lenda – dos tempos de Epimeteu – que os homens, temendo serem esquecidos pelos deuses, buscaram uma forma de seduzi-los para tê-los sempre por perto. Tentaram de tudo, desde orações até as mais estranhas orgias. As orações trouxeram um efeito inverso: os deuses estavam enjoados das mesmas palavras. Das orgias nem quiseram saber. Afinal, é entre as divindades que se encontram as mais belas formas (basta lembrar-se de Platão). No entanto, se estes artifícios já não funcionavam, o que fazer? Tinha que ser algo mais elevado, que não só tocasse os espíritos divinos, mas que os fizessem ter desejos humanos. Mas o que poderia ser isso? Ora, uma velha senhora, pouco entendida das teorias difíceis, porém grandiosa na arte dos prazeres simples, deu a dica: vamos oferecer-lhes a melhor comida! Sabedoria de uma velha sedutora, que na juventude duplicava o desejo dos homens com sua beleza e seus saborosos pratos. Pois não é que deu certo? De tanto gostarem das novas oferendas, os deuses passaram a desejá-las mais. Lembraram-se dos homens, aproximaram-se, apaixonaram e fizeram promessas de amor.
O prazer do gosto não só invade o corpo como faz brotar dos lábios um louvor à condição humana. Tem o poder de reunir no presente o passado das lembranças e o futuro do desejo. Quantos durante as férias não deixam suas casas só para se deliciarem com a comida e as guloseimas da vovó? Coitada destas, dizem alguns, tão ultrapassadas. Enganam-se. Elas é que são sábias: com seus poderes mágicos e seus temperos, reúnem perto de si os mais queridos. Grandes entendidas da metafísica do sabor... “A palavra se fez carne e habitou entre nós...” Não, nas mãos destas velhas “a carne se faz palavra e eles habitam entre mim...” Basta apenas uma mordida e o milagre acontece: imagens, paisagens, pessoas, abraços, sonhos de infância, pedaços esquecidos de nós, tudo nos sabores... Tudo nas mãos daquela anciã...
Hoje, estamos acostumados à comida rápida, microondas, conservas/conversas enlatadas – comida por atacado. O sabor é o mesmo para todos. É uma cultura da aglutinação (prazer coletivo) que faz com que todos tenham os mesmos sonhos/pesadelos, criados pelas grandes vovós multinacionais. Não é mais a boa e velha comida da vovó (que era minha, coisa da infância) que a gente esperava com paciência ao lado do fogão, brincando com os primos. Temo pelos filhos de nossos filhos que nos terão como avós. No tempo deles, os deuses se irão ou darão uma rápida passada numa lanchonete de fast-food. E suas bênçãos, o que será delas? Com certeza, não haverá tantos louvores à condição humana. O que restará? Alguém tem chá de boldo aí? A vovó tem...
*Publicado em "Epimeteu", 2002.
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