quinta-feira, 4 de março de 2010

Cultura Fast-Food


Muito se falou até os dias atuais de cultura de massa e da famigerada indústria cultural, como se ambas fossem o último estágio de uma sociedade alienada e decadente. No entanto, afirmo que os críticos da sociedade novecentista estavam equivocados: a massificação não era o fundo do poço. Se me permitem, meus leitores, gostaria de dizer que vivemos em tempos da pós-massificação, caracterizada pela “imediatização superficializada”.

Algo para a massa, ou melhor, a cultura de massa, exige tempo para ser preparado e, ademais, muito dinheiro (foi isso que fizemos no século XX na arte em série, substituímos genialidade por dinheiro). Lotar cinemas, estádios, alcançar vários espectadores pela televisão, vender livrinhos melodramaticamente açucarados, ganhar discos de ouro nunca foi algo muito barato.

Porém, tudo precisava ficar menos dispendioso sem deixar de ser vendável. Foi quando alguém teve a ideia de dizer que as pessoas estavam demasiadamente atarefadas e com pouquíssima disposição para algo que demandasse vinte ou trinta minutos. As coisas passaram a ficar mais velozes, inclusive nossos supercomputadores aos quais esmurramos se demorarem mais do que dois ou três segundos para abrir um programinha qualquer. Está certo que tenhamos urgências, mas devemos viver na urgência? A comodidade é boa, mas não seria bom um pouco de exercício cerebral?

O tempo das cartas foi substituído pelo dos e-mails, os quais foram perdendo a vez para os scraps, a leitura de um livro perdeu lugar para as revistinhas (que são até de saborosa apreciação), os jornais impressos ficaram à sombra das notícias instantâneas da internet, que acabaram eclipsadas pela admirável prática da “twitagem”. A informação não é mais processada, verificada, peneirada, ruminada, assimilada. Ela vem aos montes e tão rapidamente que os olhos são obrigados a se tornarem verdadeiros corredores de cem metros rasos. Talvez nossos órgãos dos sentidos estejam sofrendo por causa preguiça mental que nos é cada vez mais comum.

Penso que a arte é a que mais sofre com tudo isso, a começar por sua descartabilidade. Não é para menos: o que tem pouca qualidade, escasso conteúdo, raríssimo comprometimento e nenhuma devoção deixa muitas arestas, buracos, rachaduras e fácil dissolução. É como se o cérebro não mais suportasse música longas, um texto com mais de meia página, uma escultura que fosse algo mais do que bonequinhos de decoração de festas infantis, filmes densos (mas não chatos)...

Hoje, aprendi a escrever a metade de uma palavra numa caixinha de busca, apertar um botão chamado “enter” e esperar alguns breves instantes para receber tudo fresquinho em casa. Mas, acho que nem sempre o mais fresco é bom para a digestão. É preciso avaliar o valor nutritivo, ter certeza de que a mente está sendo bem alimentada, que os sentidos estão degustando prazerosamente. Seria até melhor se soubéssemos quem faz nossa comida intelectual de cada dia, o que nem sempre é possível.

Comer fast-food de vez em quando não faz muito mal, mas todo dia... Será que não nos enjoamos? E a boa e velha comida da vovó? Pois é, acabei me esquecendo... Ela demora muito para ficar pronta, não é? Por caridade, alguém nos livre de termos estômagos e intestinos fracos! Não queremos só cultura, queremos a boa cultura...


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quarta-feira, 3 de março de 2010

A fotografia


A máquina fotográfica estava sobre a mesa. “Por que logo à penumbra? Perguntou-se”. Tudo ao redor estava em profundo silêncio, como se uma letargia tomasse conta da atmosfera. Nada poderia querer ser visto, tampouco, fotografado. Sobre a poltrona de leitura estava ele, carregando sobre si o cansaço de mais um dia. Sua vontade era de se entregar ao sono, mas os olhos insistiam na contemplação da quase escuridão, das silhuetas das coisas, da visão turva do espaço. Lembrou-se da infância, de momentos que só estavam em sua memória por pura nostalgia. Veio à mente aquela viagem, quando antes do alvorecer, seguiam de carro ele e a família no mais absoluto ermo. Recordava-se da música que tocava na rádio feita para acariciar os ouvidos e acalmar a alma, do cheiro do mato ainda molhado pelo sereno, e da ausência amada que preenchia tudo. Queria trazer aquele instante ao presente, segurá-lo sem deixar escapar. Porém, dele só guardava fugidia lembrança. Para ser bem honesto, às vezes temia que parte daquele pensamento se confundisse com algum sonho que tivera no passado muito mais do que se relacionasse com o que de fato se passou.

Nos últimos anos, investira grande parte da sua renda em seu passatempo favorito: fotografia. Sua máquina era uma verdadeira captadora do mundo. Era tão precisa que dava a impressão de se comunicar com o fotógrafo, ressaltando objetos desejados e desfocando os demais, colorindo alvos de acordo com o tom pedido para a circunstância. Cada foto era uma espécie de obra, um olhar proposital e, por isso, congelado. Ao olhar a máquina mais uma vez, perguntou-se: “O que são as coisas? Elas nem sabem que estou aqui, não são parte de mim nem eu delas, por que eu as desejo, por que eu as tenho?” Era estranho que mesmo sabendo que tudo ao redor era inanimado, nada deixasse de insistir em interpelá-lo. “Desgraça de solidão que nunca me deixa só!” Murmurou.

Quanto mais escurecia, mais era possível ouvir uma voz que vinha do fundo das coisas. Recostado à poltrona, não conseguiu evitar notar as fotografias dispostas pela parede na qual o ocre se acinzentava com a proximidade da noite. Havia três fotos emolduradas em madeira escura, uma espécie de tabaco. Numa delas, ao centro, havia uma bela jovem vestindo uma capa de chuva. A monocromia da imagem impedia de definir a cor dos cabelos, do elegante xale, do resto. Percebia-se que a fotografia fora tirada da interior de um café, pois se via o escorrer dos pingos de chuva pela vidraça e a placa que ela sustentava onde estava inscrito algo como “Café Noir”.

Aquele instante emoldurado falava mais do que se poderia imaginar. Eram as últimas gotas de chuva de uma tarde de primavera. O piso da calçada e os paralelepípedos da rua ainda estavam molhados, conservando algumas poças d’água e uma fina enxurrada que escorria até os bueiros. Não estava frio, mas uma brisa fresca de ar úmido penetrava pelas portas e frestas das janelas. Dentro da cafeteria, como sempre, estava ele sozinho numa mesa para quatro. O cheiro do capuchino e das massas se confundia com o perfume que a brisa trazia, dando-lhe uma sensação de conforto que era confirmada pelos tons pastéis da decoração do lugar. Como de costume, a máquina fotográfica permanecia imóvel sobre a mesa. Subitamente, sua atenção deixou as conversas e sorrisos dos demais clientes e se pôs em direção à moça que passava do outro lado da vidraça. Dava sinais de calma ingenuidade e total descompromisso afetivo. Aquela cena o fez desejar desistir de sua vida solitária em prol de um amor por aquela senhorita; ponderou um tempo sobre isso. No entanto, suas supostas convicções o impediram de levantar e ir aonde ela esta. De repente, ela olhou em sua direção. Foi quando ele pegou a máquina, destampou a objetiva, apontou o canhão e acionou o obturador: o exato instante estava capturado. “Era melhor que fosse assim”, pensou, “a maneira como lidamos com eventos que parecem cruciais determinam irrevogavelmente suas consequências”. Para ele bastava aquele olhar, inalterado num quadro em sua parede.

Ainda imerso em devaneios causados pela visão da fotografia, não se conteve, passando a refletir sobre o que teria acontecido se tivesse a coragem de abordar aquela jovem naquela tarde. Sua mente divagava sobre como teria sido o flerte, o primeiro beijo, o namoro... Sem que se desse conta, seu pensamento já não mais estava no passado, mas no presente. Seu aparamento havia mudado completamente. O ambiente estava tomado por um sentimento diferente, os sofás não estavam mais nus, mas se achavam cobertos por mantas coloridas, os quadros na parede adquiriram novas cores... No sofá maior da sala estava ela, deitada, com um sorriso nos lábios, como se o convidasse para que se deitasse ao seu lado – seu perfume era inebriante. Uma forte buzina na rua o trouxe de volta do quase transe. Prontamente, o apartamento voltou a ser como antes, mais escuro no entanto. Ela já não estava mais ali. O silêncio dos objetos o repreendia, como se quisessem dizer: “Não deveríamos estar aqui, resignadamente daríamos nossos lugares para outros”. Olhou novamente à volta e entendeu o que tudo aquilo significava, e como se pudesse falar com as coisas, disse: “algumas de vocês ainda não sei por que possuo, mas outras só as tenho porque conseguem me dar minhas ausências”. Voltou o olhar para a máquina de fotografar e falou baixinho: “Por isso você é minha melhor amiga, minha caixinha de ausências”. Pensou que se um dia revisse a moça da fotografia, se um dia pudesse ela pudesse romper sua solidão, sua máquina continuaria a guardar seus pedaços mais preciosos de vida...


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terça-feira, 2 de março de 2010

A ironia do ser (em pseudo-aforismos)


A certeza... Quem é o dono de uma inteligência inigualável, que interpreta como nada mais o universo, racional por essência, lugar pelo qual falam todas as coisas? Se o leitor respondeu o homem acertou. Sem dúvida, tudo o que o homem pensa de si é verdadeiro. O ser humano não conhece, coloca algo novo na realidade. Por isso, o conhecimento incompleto não procede, pois é o ainda não pensado e o que não foi pensado é o não realizado. É o homem quem realiza a realidade. A natureza é o espelho do homem. Ela não diz quem somos, uma vez que só existe porque dizemos quem e o que ela é. O grande ser que é o homem habita o mundo para criar reflexos de si, pequenas cópias de humanidade.

Um pouco de ceticismo... Heráclito nos falou de certo erotismo do ser. Este não mostra tudo o que poderia revelar. Sempre que desvela, continua a velar o resto de si. Situado num ponto do real, o homem é incapaz de ter a visão do absoluto. A verdade se dá de forma caprichosa, e só se pode torcer por sua boa vontade. Descartes cogitou um gênio maligno, que nos enganaria, fazendo-nos acreditar em grandes engodos – embora, depois, o tenha descartado. E Hume (é só digitar no buscador preferido que você fica sabendo rapidinho quem foi ele)? Soube como ninguém colocar a crença na razão na berlinda... O homem se viu obrigado a repensar sua própria essência para ver se encontraria alguma.

Um palco para a comédia da história... Talvez seja muito mais engraçado que não apenas um, mas bem mais que seis bilhões de indivíduos atuem num imenso palco, pensando que são os protagonistas do universo. Quem sabe o ser não seja dono de um grande senso de humor? Isso se ele existir, diriam os céticos. Se não, a humanidade ainda carece de uma história universal mais engraçada e de um bom comediógrafo disposto a escrevê-la. Hegel e seus discípulos eram muito sérios para tal feito… O que há nos assim chamados destinos seria tão somente constantes tentativas frustradas, muita persistência, pouca caminhada intermitente em função dos incontáveis tropeços, alguma crença nos fins, várias buscas desorientadas. Pouco mais de um século depois de Nietzsche, que não é bem aquele do livro “Quando Nietzsche chorou”, e não encontramos nosso lugar no mundo e a nossa alegria com a Terra é geralmente acompanhada por fragorosos conflitos com a natureza.

Os novos dramaturgos do ateísmo... Os ateus pensam que são responsáveis pelo novo prólogo da história universal - os novos crentes do século XXI. Parece mesmo que o ser tem muito senso de humor.

O pseudo-realista... Os realistas acreditam que são os maiores críticos da dramaturgia do todo. Eles dizem: “Não se encantem com tanta beleza no mundo, ele é, de fato, só feiúra. Não lutem pela vida, pois tudo está fadado à dissolução.” São os literatos da ausência do nexo. E daí que as coisas sejam como esses homens acreditam ser? A maioria de nós quer mesmo um final feliz para o seu “era uma vez”... E muitos gostam da grande ficção.

Os gênios da caixinha... Ficção cara, vendida por pouco preço e lucro quase sempre garantido. Os pais dos eruditos da caixinha; esses sim produzem realidade de muito mau gosto.


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