domingo, 28 de fevereiro de 2010

O causo da vingança


Aquele sujeito era um canalha. O tempo que insistiu no casamento era só por causa dos dotes culinários da esposa. Esta sabia muito bem que não competia com a amante do marido em relação à maioria dos outros quesitos. Porém, sua vocação para dona de casa e submissa a impedia de pedir o divórcio. Para piorar sua situação, aquele indivíduo tinha se casado sob o regime de separação universal de bens. A casa foi comprada por ele na época de solteiro, e a mulher não teria direito algum sobre ela.

Como era de se esperar, chegou o dia em que o marido chegou da rua com a notícia: “Quero me divorciar e você tem uma semana para sair da casa.” Engana-se quem pensa que ela se desesperou. Amor mesmo já não existia na relação, era tudo uma inconveniente conveniência. Esperta, utilizou o talento culinário para arquitetar a vingança. Certa manhã, pediu o quase ex-marido para buscar um quilo de peixe não limpo na peixaria, pois queria preparar uma moqueca para o almoço. Peixe em mão, esperou que o homem saísse para encontrar a outra e começou a colocar em prática o plano. Retirou as entranhas do bicho, por sua sorte, cheio de ovas, e cortou a carne em minúsculos cubinhos. Os pedaços a contento, começou a espalhá-los entre os trilhos das cortinas e os alisares das janelas de madeira.

No dia marcado, ela saiu da casa, deixando-a aparentemente limpinha para o agora ex-marido e sua nova dona. Algum tempo depois, o sujeito começou a sentir um cheiro terrível. Pensou que era o esgoto. Chamou os encanadores, que limparam todos os canos, caixa de gordura e de passagem, mas não resolveu o problema do odor. Em seguida, mandou que a nova esposa limpasse sofás, camas, guarda-roupa, geladeira, conferir se algum animal fazia suas necessidades ao redor da moradia. No entanto, nada se encontrou.

Não mais suportando o cheiro, resolveu colocar a casa à venda numa imobiliária. Não era uma mansão, mas era uma construção vistosa, e logo encontrou comprador; ainda mais pelo preço que pediu: só setenta por cento do valor de mercado. O melhor é que deixou todos os móveis e cortinas no imóvel; queria é se ver livre do constrangimento.

Os novos moradores entraram na casa. Era um casal. Não demorou muito para perceberem o fedor de peixe estragado. Para não gastar muito o tempo de leitor, vou resumir: tomaram as mesmas providências do antigo morador. Nada foi resolvido. Ninguém sabia dizer de onde vinha o cheiro. Quanto mais tempo se passava, mais séria a coisa ficava. O casal não recebia mais visitas e quando decidiu vender o imóvel, os possíveis compradores só aceitavam um preço bem abaixo do que realmente valia: trinta por cento de seu valor.

Foi quando a primeira moradora apareceu. “Quanto vocês querem por este imóvel fedorento?” Perguntou. “Pagando mixaria a senhora leva”, responderam os proprietários. Dinheiro na mão dos vendedores, a mulher ficou com a casa e todos os móveis. Na mesma tarde, pegou uma espátula, bons produtos de limpeza e não deixou nem a lembrança do peixe podre nos trilhos das cortinas e nos alisares das janelas. No final da faxina, pensou com seus botões: “Quem é que disse que eu não era a dona dessa casa”.

Detalhes da história: pagou as insignificantes prestações da casa com a pensão do ex-marido, o qual agora vivia num apartamento com três apertadíssimos cômodos e o melhor; era seu vizinho da frente...


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sábado, 27 de fevereiro de 2010

As estações de um escritor


Alguns escritores possuem suas sazões; é isso mesmo que você acabou de ler, sazões. Porém, não se pode esquecer que há leitores que também leem sob uma perspectiva sazonal, seus olhos são sazonais. É no interior da incongruência entre esses momentos, do escritor e seu leitor, que se estabelece o conflito extrínseco ao texto entre essas duas figuras. De um lado, o escritor que quer se expressar de acordo com a estação em que se encontra, do outro, o leitor que exige do texto que seus frutos sejam os específicos de seu tempo.

Dessa maneira, percebe-se o poeta, por exemplo, envolto sob a neblina de um inverno congelante. Seu tom é pálido, pouco intenso, mas com muita densidade, algumas vezes, apenas frio, noutras, melancólico. Algumas imagens que lhe vêm à mente causam acidez, vontade de vômito, sofreguidão, outras o deixam introspectivo, sem sentimento do mundo, sua terra é ele e nada mais. Na outra extremidade está o leitor, vivendo o esplendor do mais puro verão. Seu olhar é solar, iluminador, buscador de belezas, cores, sabores, temperos tropicais... Sua leitura, ao se deparar com a gélida profundidade do texto, indispõe-se, detesta o que está diante de seus olhos. Assim diz ele: “Como assim? Eu, no verão do meu apaixonamento com a existência, exposto a uma alma tão pessimista? Não, isso jamais!” Ora, ele quer sair de si, ir de encontro às coisas, roubar-lhes um pouquinho daquilo que possuem de melhor, enquanto a leitura o coloca em frente ao espelho de seu próprio ser.

Doutro modo vive o escritor primaveril. Sua escrita é somente nascimento. Não aceita ideias preexistentes. Algumas são dadas à luz antes do tempo, sem que tenham passado pelo devido amadurecimento. Mas, são alegres, multicoloridas, com cheiro de novas. São largamente compartilhadas pelo público da mesma estação, o qual as aproveita para voar e dançar com o máximo de ligeireza. No entanto, quando tal texto se acha nas mãos do leitor invernal, causa forte indigestão. Não há nele a austeridade exigida por sua condição. É mundo demais para um coração que preza a solidão.

No ápice de tudo isso, o escritor do verão coloca a folha branca em sua mesa. Ele a vê como a terra, precisando ser iluminada pela luz solar – ele é o sol. Despeja sobre suas páginas uma intensidade quase instintiva. O leitor atento será capaz de sentir um cheiro de suor em cada palavra. No texto, o mundo parece uma grande conciliação entre amor e ódio, paz e guerra, prazer e tédio, harmonia e caos, solução e tensão, vida e morte... Todavia, para alguns leitores, sobretudo, os invernais, nada é detalhe e toda intensidade é mera superficialidade. A vontade de vômito retorna, pois não conseguem ruminar tanta grandeza. São seres setentrionais, quase polares, com nenhuma disposição para os carnavais dos trópicos.

Por fim, embora devessem ser escritores pessimistas, habitam o mundo os escritores da beleza outonal do fenecimento. São verdadeiros pintores das cores tristes, mas que fazem a alma do leitor viajar num profundo devaneio. Subitamente, seus olhos não se encontram na folha. Não são mais as palavras que completam as frases, e sim, a imaginação, o pensamento sem direção. O olhar se perde enquanto as coisas ao redor ficam turvas. O espaço se transforma em horizonte. É como se a alma caminhasse para ele. Os ouvidos se abrem para uma música longínqua, um sussurro que chama. O ar seco, as folhas secas ao chão, as árvores em letargia, o poente em várias avermelhadas, é como se tudo isso tivesse falado ao escritor, cada um com o poder de tocar o leitor. Nesse estado, quem escreve não quer conflitos, quer a serenidade. Quem espera protesto, murmurações, cinismo, sarcasmo, pouca profundidade, intensa densidade, rigor, e outras coisas do tipo, talvez não se sinta bem ao ler uma obra de outono.

No entanto, há escritores que não vivenciam qualquer sazonalidade. Alguns são polares, outros equatoriais, alguns vivem no subterrâneo, outros nas alturas. Não importa, cada um tem algo a dizer se souber o que quer e como fazê-lo (livremente). É por isso, penso eu, que escrever deve ser um respeito a si mesmo e ler deve ser respeitosamente a aceitação do outro, mesmo que para isso seja necessário o conflito. Afinal, sem umas boas briguinhas verbais a literatura seria muito chata.


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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A madrasta malvada


Quando eu era pequeno, ganhei uma coleção de livros infantis, que se não me engano, chamava-se “A escada das virtudes” – ou mais ou menos isso. Uma historieta que me recordo é a “Madrasta malvada”. Ela falava de uma menininha que recebeu a ordem da mãe, que havia feito um pote de cookies, para que comesse só um após as refeições. No entanto, a bela garotinha não se agüentava, e entre os períodos da recomendação, comia um ou dois sorrateiramente. A mãe, esperta que era, logo descobriu que o esvaziamento do pote não condizia com a lógica da moderação. Como castigo, sentou sua filha no sofá e começou a contar: “Havia uma garotinha, parecida com a cinderela, a qual a madrasta sempre mandava mexer o leite fresco, ordenhado pela manhã, até que coalhasse. Porém, à medida que o coalho se fazia, vinha a mulher maldosamente e entornava outro tanto de leite. E assim fazia todos os dias da semana, sem se importar com o cansaço da enteada.” Enfurecida, a menina reprovou calorosamente a megera, ao que a mãe respondeu: “Pois é querida, a madrasta é você e a garotinha é seu estômago. Às vezes, ele precisa de um merecido descanso, o que tem como consequência bons hábitos e disciplina.” A criança sorriu e entendeu a lição. Lembro-me que após ter lido a história, deu-me uma vontade de comer cookies quentinhos com queijo minas... Uma boa receita não faria mal agora.
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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Delírios desinteressantes


(Momento ácido... Se estiver amando e muito sentimental, não leia, por favor)


Num gênio, pensamos que a loucura é um sintoma da genialidade. Há casos em que se acredita poder ser a própria causa do talento. Porém, cuidado. Existe muita gente por aí se passando por gênio, inventado delírios racionais para endoidar o resto da humanidade. Sua arte é vendida dentro de uma caixinha, ou caixão (desculpe se o termo parece um pouco nefasto), alguns até bastante fininhos, e alcança instantaneamente a todos que vivem o grande progresso da sanidade mundial. Não é algo pessoal. É que na grande farmácia globalizada, necessita-se criar algo para o adoecimento - a voz do capitalismo pede isso. Caso contrário, como serão vendidos os remédios? Telejornal só se passa por realidade porque tem muita gente que acredita que só se pode dizer a verdade com cara de sério (além de um apelo para o sensacionalismo, como alguns fazem). Arte mesmo, isso não é verdade, é pura invenção para entreter. Por isso, depois de um dia exaustivo de trabalho, deixe que eles entrem em sua casa, novelisticamente falando. Escute delirantemente suas vozes sussurrando: “não somos de verdade, somos devaneios de um gênio, vamos fazer a dança... Um passo para cá, outro para lá... Muito bem, você já sabe nos imitar... Agora, com sua mente descansada (quer dizer, vazia), assista a mais um momento coletivo de informação telepática (desculpe-me, quis dizer televisiva). Estamos formando sua opinião.” Será que ainda existe arte de verdade, e não só da verdade, dos gênios de verdade? Parabéns a todos, filhos do gênio do século XXI, os grandes eruditos da caixinha...


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O grande espetáculo da realidade


Como ocorria todas as semanas, mais uma vez a cidadezinha se reunia ao redor do coreto da praça. Os moradores daquela quase vila esperavam sempre ansiosos por aquele encontro noturno. Afinal, em que lugar pelas redondezas havia uma apresentação semanal como aquela? Fato é que todos se sentiam privilegiados. Interessantes eram os dizeres da faixa de pano que ficava sobre o palco improvisado: “Aqui representam os criadores da realidade.” O curioso é que nas ruelas as pessoas não pareciam tê-la lido bem assim. Elas sempre perguntavam umas as outras: “Você vai à praça ver a realidade?” A resposta era imediata: “Como poderia não ir? Como se tivesse algo melhor para fazer.”

Hora marcada, certinha, subia o apresentador:

- Caros munícipes, boa noite! Estamos felizes com sua presença para mais um capítulo da apresentação da realidade.

Todos aplaudiam calorosamente...

Poucos não haviam se esquecido do porquê da criação daquela espécie de espetáculo. No início, os dramaturgos gostavam de escrever peças coesas, progressões coerentes de capítulo a capítulo com histórias cheias de peripécias, tragédias, humor... Com o tempo, a audiência diminuiu. Muitos estavam enjoados de ver os mesmos papéis, apenas transmutados nos diferentes rostos e nomes das personagens.

Os dramaturgos pensaram:

“Vamos fazer uma peça sem script, na qual cada um será ele mesmo, pelo menos, aparentemente. Colocamos os atores no palco e não lhes damos um papel, e sim, um perfil. Cada um terá que desenvolver sua própria história. Um será o mocinho, outro o vilão, uma a santinha, outra a tentação, um o líder, outro o capacho e por aí vai... Vamos dar o nome de ‘apresentação da realidade’.”

Foi um sucesso! O espetáculo era certeza de praça cheia. Ao fim, as pessoas se regozijavam, dizendo:

- Como isso engrandece o nome da nossa cidade!

No entanto, para a surpresa dos empresários do negócio, a multidão foi diminuindo semana após semana. Foi quando um gênio da dramaturgia local disse:

- Vamos criar um “semi-script”. Colocaremos todos os atores e atrizes numa situação inicial na qual deverão desenvolver suas tramas a partir de ações irracionais e instintivas. Depois, pediremos que cada um, após cada ato, justifique superficialmente suas razões.

Os empresários não erraram por aceitar a proposta. Todos os recordes de público foram batidos. Entre todos os espectadores só havia um sentimento: a alegria por poder compartilhar com os atores, que agora eram pessoas comuns, a verdade nua e crua.

Foi um reboliço na cidade. Só se ouvia nas esquinas, nos bares, na escola, no hospital e até na prefeitura, uma fofoca institucionalizada: “Você viu aquele sujeito? Que sujeitinho não é?” Meses depois, crianças, jovens, adultos e velhos, homens ou mulheres já não acreditavam que havia realidade fora da pracinha. Eles estudavam de mentira, trabalhavam de mentira, dormiam de mentira, comiam de mentira, amavam-se de mentira... A verdade só podia se encontrar e se realizar na famosa “apresentação da realidade”. Além disso, muitos passaram a imitar os perfis de seus atores preferidos. É inimaginável quanta coisa instintiva e sem sentido começou a fazer parte da vida social da até então pacata comunidade.

Certo dia, enquanto todos assistiam a mais um espetáculo, alguém do meio da multidão gritou:

- Vocês se alegram por terem inventado e participado de algo original? Pois estes empresários e dramaturgos são uns copistas medíocres; não inventaram nada, só trouxeram para nós aquilo que já era espetáculo há muito tempo na grande cidade do outro lado da lagoa. E todos sabem o que aconteceu com ela; a metrópole falida.

No palco houve silêncio, entre o público pavor... Passados alguns instantes, alguém bradou:

Tirem esse louco daqui! Vamos interná-lo, pois está variando! Coitado, deve ser um asceta que não conseguiu colocar os pés no chão...

Expulso o baderneiro, todos se assentaram e calmamente retornaram para a realidade...

Eu, que por lá passei, conto um fato real e sem pretensão alguma. Porém, se o leitor preferir não acreditar, que pense: “Qualquer coincidência com a semelhança é mera realidade.” E tenho dito.

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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Antologias de um esquecido...


Aos que detestam... Simplesmente
Durante o dia, não maldiga o sol louvando a sombra;
Sem o sol, a sombra nada é;
Sem a luz, a escuridão tudo é;
Assim, não amaldiçoe o sol, apenas ame as árvores...

Não se indigne pela noite porque torna difícil o caminhar;
Sem escuridão, não há lugar para os pequenos brilhos;
Desconhecidas seriam as estrelas da madrugada;
Alegre-se em caminhar entre muitas;
Elas também iluminarão a caminhada...

Aos que esperam a poesia...
Ouça o ritmo, dance ao seu compasso em pisadas duras ou macias;
Veja a dança suave entre a rima e a métrica;
Rejubile-se com a salubridade das regras;
Suba a montanha das eras...
Porém, só habite entre mim se amar as palavras,
Ainda que não sejam poesia, ainda que sejam só poéticas.
Viva em minha casa,
Mesmo que não mais haja mais o ritmo, a rima, a métrica, as regras...
Colocaremos na porta uma placa:
Na casa dos sem poesia moram os que esperam pelos poetas...
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Desabafos de um não sedutor...


Antes de começar, quero esclarecer o título da crônica. Se o leitor mexer um pouco em meus escritos, verá que há algum tempo, escrevi um texto intitulado “Confissões de um sedutor”. Embora pareça absurdo, não foi pretensioso, da mesma forma que este não é despretensioso. Disse que a sedução não é mera arte, é um atributo. Não peço desculpas pelas palavras que causaram algum desconforto – e acho que isso ocorreu com frequência, tendo em vista a pouca receptividade que teve, ainda que tenha tido um número razoável de leituras nos meios em que foi postado. Talvez ocorra o mesmo com a crônica que você está lendo. Aliás, como geralmente recomendo, não acho que vai valer a pena você prosseguir em sua leitura. Se insistir, pelo menos, peço que não seja deselegante ao escrever xingamentos. É bom que se tenha bom gosto até para escolher as palavras com as quais iremos... Você sabe... Xingar alguém. Eu até tenho a opinião de que a ortografia da palavra xingar é muito feia... Deve ser algum preconceito com as palavras que começam com “xis”. Lembre-se dos conselhos do Che: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!”.

Voltemos ao problema do título. Caro leitor, você acha que me equivoquei no título do texto anterior, aquele que me referi acima? Não seria melhor se fosse “Conselhos de um sedutor”? Mas, isso não tem importância, pois parece que virou práxis literária. Se escrevo um livro querendo contar vantagens, dou o nome: “Confissões de...”. Porém, se minha autoestima está baixa ou quando tenho algo que vai me comprometer socialmente, dou o nome de “Desabafos de um...”. Por sua vez, não parece estranho que alguém escreva um texto exaltando qualidades de um sedutor e, pouco tempo depois, outro falando da sua incapacidade de seduzir? Cadê o princípio da não-contradição?

Seduzir... A arte de despertar os sentidos alheios, dar aos sentidos vontade própria, fazer com que os sentidos do seduzido tenham uma vida independente, sejam autonomamente seres pensantes, sem que existam sem o desejo.

Agora, não quero possuir mãos, pernas, seios, bocas... Quero abraçar mentes, debruçar-me em corações, enlaçar sonhos...

Não desabafo porque minha autoestima está baixa, mas porque querem que eu só seduza, enquanto eu gostaria apenas de uma boa conversa, um bom chocolate quente, um olhar entre amigos, um passeio pelo parque... Desabafo porque a sociedade contemporânea, do culto ao corpo, sentidos e instintos, exige que eu apenas seduza para estar entre pessoas, ou melhor, entre prováveis objetos sexuais. Enquanto o tempo passa, a idade adianta, os cabelos embranquecem, passo a ver o quanto é bom estar somente entre amigos, amar apenas a quem respeitosamente me seduziu, não ser excluído só porque não quero seduzir ou ser seduzido, estar com alguém só para contemplar as montanhas douradas ao entardecer, sem que ambos nos notemos, embora a outra presença enriqueça o instante.

Desabafo... Hoje é o dia de todos nós, sedutores ou não, seduzidos ou não... É a manhã para a vida plena de vontade de ser... É isso, tolerância ao simples ser, ao ser simplesmente, ao ser exultante/mente...

Desabafo... Pela tristeza que engrandece, pela alegria que não se contém.

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domingo, 21 de fevereiro de 2010

Domingo


Ele estava “endomingado”, diriam uns. Era uma roupa diferente daquela que usava durante a semana. O dia estava claro, mas não fazia muito calor. Caminhava entre os arbustos que ladeavam a escada da igreja. Ninguém parecia notá-lo, aquele mundinho, tão pequeno, parecia ser todo seu. Olhava os insetos que subiam pelas plantas, pegava alguns pelas asas, jogava outros para o alto para ver se voariam...


Subitamente, um som rasgou o barulho da multidão. Ouviu seu nome e uma recomendação: “meu filho, não faça isso, você vai sujar sua roupa, venha para cá!”. Mesmo assim, nenhum olhar alheio o notou. Sua mãe, ao perceber que atitude da criança não havia mudado, esqueceu-se dela. Ali estava ele, em seu mundo, vivenciando cada instante de um breve momento de pura felicidade, sorrindo para as coisas mais minúsculas e insignificantes.


Quem poderia julgar que o menino sabia que era domingo? Mas, talvez, fosse possível imaginar que ele sabia que o domingo era todo dele... Isso se alguém considerasse sua existência.
Enquanto se divertia, os sinos badalaram. Todos deveriam entrar. As brincadeiras deveriam parar, as crianças sossegar, o ar se entristecer. Ali, naquele lugar, por rápidos segundos, o contraste se fez: o menino, solitário, com um rosto alegre, exultante, e os adultos, juntos, compungidos, contristados, pálidos...


Em meio à plena descontração, sentiu um forte solavanco. Sua mãe o puxou pelo braço, com a feição de raiva. “Por que ele não a ouvia?” Deve ter se perguntado aquela senhora. Assim, a solavancos, entraram ambos pelos portais da igreja. Ele, choroso, porém, irreverentemente, sentou-se em um banco. Olhava de um lado para o outro, como se estivesse enfastiado com cada segundo que se estendia, teimando para se tornar interminável.


As canções foram cantadas, as palavras ditas, os olhos fechados... Nada disso parecia importar. Quando tudo parecia perdido, ele olhou para os nós da madeira dos bancos e começou a alisá-los com os dedos. Dava a impressão de que eles eram caminhos, desenhos, lagos, tudo, menos partes de um banco. Sua face se tornou novamente tranqüila, serena, alegre. Entre as pessoas, nada mudou. Todos continuavam sérios, atenciosos, distantes...


Foi assim, passando as mãos entre os nós, fazendo voltas com os dedos, que pela primeira vez outra senhora o notou. Quem a viu não entendeu, mas ela sorriu também. Não, eu não a conhecia. Isso não importa, nunca vou esquecê-la. No entanto, não compartilhei com eles aquela felicidade mútua, aquela alegria de domingo...


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sábado, 20 de fevereiro de 2010

O nome que diz...


Não diga o que quiser, apenas pronuncie o nome... Deixe que ele escorra da sua boca, involuntariamente... Que seja natural, sobrenaturalmente, com a língua em transe. Permita que ele encontre meus ouvidos... Cante esta palavra que se faz só nossa, que me traz seu rosto, suas mãos, seu cheiro... Sua alma... O nome que é você através do som dos seus lábios. Que seja ouvido ao adormecer como uma canção de ninar, ao acordar como o canto matinal dos pássaros, ao meio-dia como afago no meio da agitação cotidiana... Enquanto... Durante... Sempre... Que meu nome se una ao seu e que ambos se apaixonem, provoquem um ao outro, que queiram fazer amor... Que façam amor... Que nasça disso um filho, um novo nome: Deleite/Eternidade... E ainda que você não esteja mais aqui, mesmo que seja dura a lembrança, não importa, restará algo: o nome... Aquele que infinitamente diz...
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A prece...


Ali estava ela, de joelhos... Silenciosa por fora, plena de murmúrios por dentro. Percebia-se isso pelo retesamento do rosto, pelo movimento dos lábios, pelos olhos fechados... Quem a olhava via alguém no mais profundo de si, visitando as entranhas do próprio ser. Uma alma que transcendia aquele espaço.

O tempo parava em torno dela. Todos os objetos em torno pareciam ter se tornado grandes ouvidos. Tudo a contemplava fixamente. Nada, absolutamente nada, ousava falar. Dos sinos, só se ouvia o ressoar das últimas badaladas... Calmamente... Sonoricamente... Decaindo.

Nada era vivo... Nada era fúnebre.

Os outros que entravam no templo, ao olharem aquela figura ajoelhada ao centro, também se calavam, caminhando levemente. Alguns queriam fechar os olhos, mas não conseguiam. Estavam unidos aos objetos. Tornaram-se somente ouvidos... Espírito e divagação.

Pelas janelas, uma fresca brisa penetrou, balançando as folhagens nos vasos, os fil ós, as guirlandas... Foi lentamente até tocar os cabelos dela, os quais se entregaram a um breve movimento. De pronto, uma lágrima, apenas uma, correu dos olhos dela. Nesse instante, o silêncio foi quebrado por um suspiro...

Um rápido suspiro e... Seu rosto estava como antes, numa contrição comovente. Era todo angélico... Só isso bastaria para torná-lo belo.

Todo temor do mundo estava presente. Todo tremor se fazia sentir...

A aura estava intacta, enquanto as cores do céu dançavam ufanosamente, sempre se transformando. Alegria celeste, tristeza bela... Sofrimento gostoso que se continha... Infindável.

Um vazio nostálgico tomou conta da atmosfera. Foi quando os sinos badalaram. Eram seis da tarde. Uma, duas, três... Seis badaladas. Seu tom era solene, como o resto do universo. Era sublime.

A igrejinha ficava no alto daquele morro, destacada pela paisagem. Era reverenciada pelas velhas casinhas.

Era a hora em que suas luzes se acendiam, todas num amarelo profundo. Elas diziam: aqui tem gente assim, com vontade de chorar também. A pequena vila esperava... Tudo esperava que ela saísse por aqueles portais. Todos se preparavam para o cortejo.

Lá dentro, os olhos dela se abriram, levantando-se sem que mirassem um ponto fixo. Sequer olhavam o horizonte. Em sincronia, ela também se levantou. As luzes do templo ainda estavam apagadas. Só as velas iluminavam seu caminho. Era tudo muito pequeno, tudo tão imensamente completo... Era só o infinito.

Andou até o portal e saiu... Desceu a ladeira enquanto todos a observavam pelas janelas. Aos poucos, sua silhueta foi se confundindo com a escuridão noturna. Diante da pálida e plácida admiração alheia, desapareceu... O calor daquela noite era confortável. Foi quando minha mãe me disse: terminou meu bem, agora sim terminou...


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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Confissões de um sedutor...


A sedução não é apenas uma arte, também é uma característica. Seduzir é despertar a atenção dos sentidos alheios para aquilo que se dá como um objeto de desejo... É tornar-se tal objeto. Para além disso, é ser capaz de enlouquecer o mais lúcido ser humano, assumindo a forma de todos os eventos possíveis do mundo, transformando-se no único que vale ser amado.

Engana-se quem julga mal um sedutor. Não imagino grande amor que não tenha surgido de uma sedução – tampouco uma profunda desilusão. Aliás, bem lá no fundo há sempre uma vontade que tende para o outro, para a entrega erótica, um apelo pela própria conquista. São incontáveis aqueles que passam uma vida inteira na busca por ser seduzido.

Lembro-me de Sören Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX, que tentou expressar com maior propriedade o que seria um sedutor. No entanto, ele sempre falou da própria experiência: um homem que foi ao mesmo tempo sedutor e seduzido. Sua paixão quase acética pela senhorita Regine Olsen fez nascer nele alguém que viveu em função de se fazer percebido por uma mulher que talvez o negligenciasse apenas porque jamais conseguiu lhe esquecer. São suas as seguintes palavras:

“O que sou? O simples narrador que segue os teus triunfos; o bailarino que se curva sob os teus passos quando te ergues na leveza da tua graça; o ramo sobre o qual te repousas um instante quando estás casada de voar; a voz de baixo que se submete ao devaneio do soprano, para deixá-lo subir ainda mais alto – o que sou? Sou o peso terrestre que te prende à terra. Então, que sou? Corpo, massa, terra, pó e cinzas...” (Diário de um sedutor).

Seria essa sua verdadeira posição, um submisso ao amor? O quanto de ironia há nisso? O certo é que o sedutor sabe qual é seu preço: nem muito nem pouco, somente o suficiente. Ele nunca se dá gratuitamente. Sabe que se for extremamente barato, satisfará apenas desejos, mas se custar algo realizará sonhos.

Nenhuma beleza é demasiada para um sedutor, pois ele a todas submete. Ele as encanta, transmutando-se impressionantemente num similar, ainda que para isso utilize toda sua feiúra. Sua idade, sua roupa, suas posses, seu corpo, sua voz, seu cheiro... Nada é empecilho. Tudo é utilizado como arma de sedução.

Para tudo isso não há fórmulas, cursos, feitiços... Faz parte do seu ser. É atributo, não algo que se lhe tenha sido anexado durante a vida. Seu poder é tamanho que cada palavra não é um afago, é um signo de posse. E nem adianta trocar nomes, usar superlativos, roupas de grife, automóveis caríssimos para se passar por um sedutor. Se alguém acreditar nessas coisas para seduzir, ficará admirado quando um “pé-rapado” tomar seu lugar nos sentidos da pessoa desejada.

Esso vuole, esso seduce, esso ride della vita

Continua... Não sei quando.

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Fragmentos...


Não sei por que chamam os textos minúsculos de fragmentos. Um fragmento é um pedaço. Ora, se um escritor pensou: não quero escrever nada mais, isso é suficiente. Logo, o que escreveu não é um pedaço, é um todo. Há pessoas que não aceitam poucas palavras. Acreditam que boas idéias precisam de muito espaço preenchido por um monte de palavras. É bom lembrar do quanto os ricos pagam por tão pouca comida fina...
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Velho e o Riacho


Num canto solitário de uma floresta distante, vivia um velho eremita. Seu cabelo e sua barba eram longos e brancos, como se fossem neve deslizando sobre as montanhas geladas do norte. Morava em uma aconchegante cabana de bambu e telhado de madeira rústica. O casebre possuía pequenas aberturas que serviam como janelas pelas quais se avistavam os cumes cobertos pelo gelo e pela neblina da madrugada. Uma porta baixa era insuficiente para a estatura do velho que quase não passava por ela. No interior havia três repartições, mas a serventia de cada uma delas não era bem definida. Contudo, o lugar preferido do eremita era uma lareira onde se acomodava nos dias frios. Não eram poucas as horas que permanecia estático contemplando as chamas. Era o altar do devaneio, da poesia, da música, do sonho, do amor, do desamor... Da solidão.

Ao lado da cabana, passava um pequeno riacho com águas tão límpidas que era possível ver os cardumes ao cair da tarde. Para transitar entre suas margens, foi feita uma pequena ponte com o tronco de uma árvore. Além da outra margem passava uma trilha que descia o riacho e sumia por entre a mata fechada. Durante o dia, vários tipos de animais eram vistos correndo em busca de alimento. À noite, sapos e grilos quebravam o silêncio e o velho deixava seu solilóquio para apreciar sua música.

Como nunca havia cruzado a ponte e o mundo do outro lado do riacho era estranho para o velho. Apenas ouvia falar dele pelos viajantes que buscavam informações a respeito das trilhas e acabavam contando várias histórias. Os mais apaixonados contavam das belezas, dos amores, das donzelas, dos sabores... enquanto os desiludidos preferiam falar dos assaltos, dos assassinatos, dos temores... Precavido, o velho sempre optava por permanecer em sua casa. Era mais seguro.

Num determinado dia, os ventos começaram a cantar forte em sua casa. Em suas vozes, melodias de lugares distantes, sonhos de criança que jamais seriam vividos se permanecesse naquele berço eterno. As canções despertaram entidades secretas. Desejo e curiosidade dançaram em seu coração, e ele bateu mais forte. Não cabia em seu peito. Queria saltar e ir para lugares onde bateria por outras coisas. Mas, a entidade do medo queria fazer a brincadeira parar. Exigia que o velho fizesse como os guerreiros helênicos que costumavam oferecer holocaustos a Fobos para que não se apoderasse deles na batalha. Para eles, o temor não era a falta de coragem, mas a sensação de segurança que a acomodação parecia trazer. Ao tentar exorcizar Fobos, o velho se deparou com outra entidade, mais forte que qualquer outra que já havia possuído sua alma: a angústia. É mais fácil lutar contra o medo do que contra a angústia, pois o primeiro é um sentimento em relação a algo que se sabe, enquanto o outro é um sentimento que não remete a nada. È um vazio que preenche grande parte da existência. Mesmo quem se cura do medo da morte, sente angústia. Para o medo existem os psicólogos, para a angústia os filósofos... Esses sabem que isso é um mal crônico e seu anestésico se encontra nas mãos dos poetas.

O desejo e a curiosidade falaram mais alto. Depois das tralhas e malas arrumadas, o velho partiu. Quase não se conteve ao atravessar a ponte. Tudo era novo para cada sentido de seu corpo: o perfume das flores que não existiam perto da cabana, o cantarolar dos pássaros, o gosto das comidas das senhoras taberneiras, a suavidade da pele de uma criança e muitas outras coisas adoráveis. No entanto, o que mais lhe tocava era o crepúsculo nas montanhas altas. Nesta hora, o silêncio tomava conta do universo e ele conseguia ouvir a voz de seu amigo rio que há muito havia crescido: não era mais uma criança/riacho. Suas águas não eram mais tão claras e em sua profundidade guardava segredos que jamais se manifestariam em sua superfície. Isso deixava o homem triste. Pensava que seu amigo estava lhe abandonando. Por outro lado, muitas vezes, o sofrimento ensina que a superfície é o lugar mais seguro, ponderou o velho. Seu amigo sofria com a sujeira dos homens e suas indústrias, com o barulho dos navios, com a morte de seus peixes por causa da poluição... Esse era o momento que o rio mais precisava de seu amigo. É na hora que mais segredos são guardados que mais se precisa de amor. O amor limpa a alma...

Assim, velho e rio seguiram sua viagem juntos. Ambos estavam caminhavam para um só lugar. O tempo era curto e o caminho menor ainda. Muitas coisas já não poderiam ser experimentadas. O mundo era muito grande para um caminho/tempo tão pequeno. Ao longe o velho ouviu um barulho forte. Andando um pouco mais, viu muita água e percebeu que seu amigo ia com mais velocidade em direção àquele lugar: o mar. Mergulhou suas mãos no rio e sentiu que ele estava com medo, e sentiu medo também. Suas lágrimas se misturaram às águas: ambos eram um só. Neste instante, em sua mente vieram as lembranças da floresta, lugar para o qual jamais retornariam. Lembrou-se da cabana, das árvores, dos pássaros de sua infância, do riacho, da ponte, dos viajantes... Não havia mais tempo. O chamado que vinha do mar transformava a lentidão das horas no rápido compasso do anoitecer. A brisa fria e a meia-luz davam o tom da última melodia. E foi assim, no andamento crepuscular da existência, que dois amigos mergulharam no infinito... Ali, o velho se tornou criança e o rio se transformou num limpo riacho, e ambos brincaram novamente...
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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sobre deuses e vovós...*


Reza uma velha lenda – dos tempos de Epimeteu – que os homens, temendo serem esquecidos pelos deuses, buscaram uma forma de seduzi-los para tê-los sempre por perto. Tentaram de tudo, desde orações até as mais estranhas orgias. As orações trouxeram um efeito inverso: os deuses estavam enjoados das mesmas palavras. Das orgias nem quiseram saber. Afinal, é entre as divindades que se encontram as mais belas formas (basta lembrar-se de Platão). No entanto, se estes artifícios já não funcionavam, o que fazer? Tinha que ser algo mais elevado, que não só tocasse os espíritos divinos, mas que os fizessem ter desejos humanos. Mas o que poderia ser isso? Ora, uma velha senhora, pouco entendida das teorias difíceis, porém grandiosa na arte dos prazeres simples, deu a dica: vamos oferecer-lhes a melhor comida! Sabedoria de uma velha sedutora, que na juventude duplicava o desejo dos homens com sua beleza e seus saborosos pratos. Pois não é que deu certo? De tanto gostarem das novas oferendas, os deuses passaram a desejá-las mais. Lembraram-se dos homens, aproximaram-se, apaixonaram e fizeram promessas de amor.
O prazer do gosto não só invade o corpo como faz brotar dos lábios um louvor à condição humana. Tem o poder de reunir no presente o passado das lembranças e o futuro do desejo. Quantos durante as férias não deixam suas casas só para se deliciarem com a comida e as guloseimas da vovó? Coitada destas, dizem alguns, tão ultrapassadas. Enganam-se. Elas é que são sábias: com seus poderes mágicos e seus temperos, reúnem perto de si os mais queridos. Grandes entendidas da metafísica do sabor... “A palavra se fez carne e habitou entre nós...” Não, nas mãos destas velhas “a carne se faz palavra e eles habitam entre mim...” Basta apenas uma mordida e o milagre acontece: imagens, paisagens, pessoas, abraços, sonhos de infância, pedaços esquecidos de nós, tudo nos sabores... Tudo nas mãos daquela anciã...
Hoje, estamos acostumados à comida rápida, microondas, conservas/conversas enlatadas – comida por atacado. O sabor é o mesmo para todos. É uma cultura da aglutinação (prazer coletivo) que faz com que todos tenham os mesmos sonhos/pesadelos, criados pelas grandes vovós multinacionais. Não é mais a boa e velha comida da vovó (que era minha, coisa da infância) que a gente esperava com paciência ao lado do fogão, brincando com os primos. Temo pelos filhos de nossos filhos que nos terão como avós. No tempo deles, os deuses se irão ou darão uma rápida passada numa lanchonete de fast-food. E suas bênçãos, o que será delas? Com certeza, não haverá tantos louvores à condição humana. O que restará? Alguém tem chá de boldo aí? A vovó tem...
*Publicado em "Epimeteu", 2002.
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domingo, 14 de fevereiro de 2010

Os suspiros de uma democracia...


Acabaram de arquivar a nossa democracia. Todos possuem o direito de não serem condenados se inocentados, mas só em um país sem propósitos alguns têm o direito de não serem investigados se suspeitos. O que ninguém responde é por que chamamos esse mesmo país de democrático. Tolos são aqueles que acham que ainda brincam conosco... A verdade é que eles zombam da nossa cara. Sempre há acordos no final (que nós já deveríamos ter parado de chamar de pizza, dando enormes asas à impunidade). Foi assim algum tempo atrás, é assim hoje e será assim amanhã. Estamos mais tolerantes e eles mais... mais... corruptos? Ora, quem irá condená-los se eles mesmos são a lei? Teoricamente são eles que deveriam dizer o que é certo, e na prática é isso... Eles nos disseram que nada do que eles fazem é sujo suficientemente para estarem errados. Lembrem-se da queda da Bastilha, quando os sonhadores da democracia moderna derrubavam simbolicamente um regime ilegítimo. Quanto tempo esperaremos para jogar por terra o nosso regime ilegítimo? Não adianta um grito contido, um protesto calado, uma ação aprisionada. Para ser sincero, ou não queremos mais pintar nossas caras para não atrapalharmos nossas maquiagens e bronzeados ou já nos enjoamos da conquista democrática. Talvez seja porque gostamos da aventura da reconquista ou porque nos esquecemos dos inumeráveis heróis que lutaram nas ruas para reaverem o poder de todos. Não nos esqueçamos dos tiros, das prisões, das bocas silenciadas, dos quartos vazios, das mães chorosas, dos filhos sem pais, dos diplomas sem donos... Onde estão eles? Pois é, acabaram de arquivá-los com nossa democracia...
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sábado, 13 de fevereiro de 2010

Tudo bem, vamos discutir a relação...


Gostaria de pedir licença... poética. Vamos discutir o indiscutível. Eu só te procurei porque não queria te encontrar. Aliás, penso que se jamais tivesses me amado, já terias me amado um dia. O contrário também poderia ser verdade se eu nunca tivesse sido contrariado de que o inverso seria verdadeiro. Mas isso não importa, já que tu sempre te importas com o que invariavelmente me importo. Ora, quero que saibas que se eu te amo é porque nunca amei ninguém, ainda que isto se refira a ti. Aprecio-te como aprecio a nudez de uma mulher que nunca se despiu para que alguém a apreciasse. Não que eu esteja indisposto, posto que normalmente me disponho a estar contigo, ainda que seja indisponivelmente. Algumas vezes, desprezo-te só pelo fato de que a cada dia te prezo mais. Entre nós não há mais nada, embora o nada seja impensável, logo, deve haver muita coisa, pois ainda penso em ti. Devo te falar mais duas coisas: enquanto não te olhava, não sabia por que te olhava tanto e decidi continuar te olhando. Da segunda coisa me esqueci. Não tem problema, ainda tenho que falar uma terceira: acho que nunca me compreendes bem. Porém, decidi tudo, o que se dará por decidido quando souber o que havias decidido antes da minha decisão. Por fim, se me despeço dizendo adeus é porque sei que amanhã te verei brevemente...
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Porque não sou poeta...


Não sou poeta. Poetas são aqueles que sabem usar as regras da métrica, da rima... que cantam com sons sem que haja música. Nisso sou péssimo. Quem quiser aprender algo sobre a estrutura de um soneto, por exemplo, não leia meus textos. Aliás, neles nada se aprende. Os verdadeiros poetas brincam de cupidos léxicos, têm prazer no apaixonamento das palavras. Em seu jogo, estabelece-se toda tensão de uma paixão: o flerte, o receio, o convite, o beijo, o enamoramento, o amor, o ódio, a eternidade... Eternamente a palavra poética, e só é poética a palavra que já foi conjugada, estará unida ao seu par... É por isso que se diz que há o amor segundo Platão, segundo o Apóstolo Paulo, Agostinho de Hipona, Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes... Cada um possui o próprio universo poético. As palavras poéticas não sabem pedir licença e ainda assim todos os sons se silenciam diante delas. Elas dançam no tempo e no espaço, dos pensamentos do poeta aos ouvidos alheios antes mesmo de terem sido ouvidas. Não são desta forma os mensageiros da morte, aqueles que destroem a eternidade, capazes de fazerem ruir as mais belas paixões poéticas. A tais algozes foi dado outro nome: críticos. Eu suas bocas a palavra viva é mastigada, destroçada, sacrificada... São os mesmos que matam, realizam a autópsia e simulam os lamentos fúnebres com seus comparsas... que não são poucos. Mas não é por isso que não sou poeta... Assim diz o palavreiro.
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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O vendedor de palavras...


Eu gostaria de vender minhas palavras, mas acho que isso não será possível. Isso porque palavras não pertencem a ninguém, estão na boca de todos, nos textos, nos outdoors... De qualquer modo, quando a gente junta palavras, cria aquilo que os outros chamam de ideias. No entanto, ideias são coisas que estão na cabeça de cada um. Moram nela com suas imagens, seus cheiros, seus sabores, suas nostalgias... Porém, tem muita gente que acha que vê ideias. Algumas até pensam que lêem ideias. Acontece mais ou menos assim. Eu junto algumas palavras e aí você as lê. Quando elas penetram e falam mais do que deveriam, você diz: que interessante, esse escritor falou exatamente o que eu penso, como gostaria que essa ideia fosse minha. Por isso existem bons vendedores de palavras, porque conseguem fazer com que seus saquinhos de letras sejam saborosos.

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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Ao sabor da luz...


O tipo de luz determina a escrita. Existe a luz que se impõe, fazendo-nos olhar para fora. É a luz diurna, solar. Sua característica é mostrar verdade demais. Os escritores que se banham por ela falam de convicções e formulam sentenças categóricas. Sua sina é sempre pensarem que são compreendidos, mas nada conseguiram expressar. Seus interlocutores são seres fotofóbicos, habitantes das profundezas da terra, toupeiras. Por sua vez, a luz das velas opera um movimento inverso. Ela convida o olhar interior. Os escritores que escrevem nessa circunstância são pouco democráticos, um quase silencio. No entanto, assustam-se que outros os tenham ouvido. Não escrevem verdades públicas, mas íntimas. Talvez seja por isso que muitos acreditem neles, e há até aqueles que se transformam em seus clones intelectuais... Por fim, existe a luz do horizonte, aquela que vem, embora não se saiba do que procede. É meia... luz... Está entre o visível e o invisível, a luminosidade e as trevas, o saber e o não saber... Mostra apenas silhuetas, numa cor exclusiva de sabor. Nela, fundem-se a coisa e a sua sombra, a verdade e a mentira, o escritor e a escrita...
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terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Resenha do conto “A infância de um chefe” de Jean-Paul Sartre


A edição integral de “Le Mur”, título original de “O muro”, de Jean-Paul Sartre teve sua primeira edição em 1939, na França. A obra é dividida em seis contos – “O muro”, “O quarto”, “Erostrato”, “Intimidade” e “A infância de um chefe” – da qual destacaremos o último deles. A publicação desta obra se dá um ano após o lançamento do principal romance do autor, “A náusea”, que, junto de outros títulos, é parte de uma extensa lista de romances e peças teatrais que figuram ao lado de suas obras filosóficas. A presente resenha faz uso da tradução em português de Alcântara Silveira para a coleção Círculo do Fogo da editora Nova Fronteira.

Deixando de lado a densidade de um texto filosófico, as obras literárias de Sartre possuem a simplicidade e a sedução da linguagem de um literato sem perder a profundidade dos temas abordados. Há uma combinação dos vários elementos que permeiam sua filosofia de forma bastante envolvente. No caso do conto “A infância de um chefe”, classificado por alguns críticos como uma espécie de novela, o autor demonstra seu talento unindo de maneira bem descritiva o momento histórico francês, o perfil dos personagens e algumas idéias que se consolidavam no período entre guerras (1919-1939), entre elas a psicanálise freudiana.

O protagonista de “A infância de um chefe”, Lucien Fleurier, é um adolescente que nasceu pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Todavia, o leitor pode encontrar alguma dificuldade para situar os momentos de sua vida. Um dos motivos é que Sartre não revela sua idade em nenhum instante. Outro motivo é a ausência de datas, sendo necessário um conhecimento prévio do contexto europeu no ínterim do conto. Um dos indícios contextuais é a referência ao revanchismo francês, sentimento gerado pela perda da região da Alsácia-Lorena para os alemães após a guerra franco-prussiana (1871) e que perdura até a homologação do Tratado de Versalhes (1919). Há, ainda, outro obstáculo para o leitor estrangeiro: a confusão que pode ser feita decorrente da vida escolar dos garotos franceses – um exemplo claro é quando a narrativa alude ao fato de Lucien ter concluído o bacharelado na École Saint-Joseph enquanto, ao que parece, ter completado apenas o ensino fundamental.

Lucien é filho único de um casal burguês, Senhor e Senhora Fleurier, da cidade de Férolles. Desde muito pequeno, conviveu com a bajulação dos empregados de seu pai, principalmente durante o crescimento do poder liberal-capitalista, que posteriormente, grosso modo, será responsável pela Primeira Grande Guerra. A narrativa imerge no mundo infantil explicitando as primeiras dúvidas que buscam afirmar a identidade de um indivíduo diante do mundo, dos outros e de si mesmo. As perguntas, “será que existo?”, “o que sou para os outros?” e “o que é o mundo que me cerca?” estarão presentes o tempo todo.

Fazendo um paralelo com a teoria psicanalítica – bastante explorada no conto – as dúvidas começam pela questão do que a mãe de Lucien realmente significava para ele. Uma passagem a ser enfatizada é a pergunta do vigário sobre quem mais amava: Nosso Senhor ou ela. Lucien ficou confuso em relação ao que realmente sentia. Destarte, após uma reflexão em seu jardim, decidiu que não gostava da mãe. Por outro lado, nas palavras do autor “Embora sem se sentir culpado, recobrou seus carinhos, porque pensava que devia fingir sempre amar os pais, senão seria um menino ruim”. Em seguida, empenha-se em descobrir de que são feitos os objetos a sua volta e o que representam as pessoas que o cercam. Conclui que os nomes não são nada, ou pelo menos, só são alguma coisa se significarem algo para quem os diz. Ora, ainda que isso pareça prematuro para uma criança de cinco ou seis anos, Sartre foi bastante feliz ao lidar com a curiosidade infantil que, aos poucos, vai delimitando seu mundo.

Em uma visita à fábrica de seu pai, Lucien decide que também será um chefe. Este projeto pueril permeará toda sua adolescência. Observa-se um constante enfrentamento diante de outras decisões e posturas com um único propósito: saber se essas decisões e posturas o tornarão um chefe tão bem sucedido e certo de seu papel como o Senhor Fleurier. Um exemplo claro é quando, no fim da adolescência, evita ter um caso com uma empregada de seus pais, Berthe, por considerar que isso mancharia sua honra na cidade onde se tornaria patrão. Ora, isso é mais um dos temas demasiadamente discutidos na filosofia sartreana, o projeto como a busca existencial do indivíduo e que realiza a liberdade, parte fundamental da estrutura ontológica do ser humano.

Ao entrar na escola, entre seis e sete anos, Lucien terá uma experiência muito trabalhada por Sartre em suas obras filosóficas: o olhar do outro. Dentro do banheiro acha engraçada a inscrição que chamava seu colega de classe, Barataud, de percevejo por ser pequenino. No entanto, ali também havia outra que o chamava de grande aspargo por ser bem maior que o resto de seus colegas. A partir desse dia, sentia-se incomodado pensando que todos o observavam, até nos momentos mais íntimos. Na classe, queria mudar de lugar para que os outros não o vissem pelas costas – ângulo que não se pode ter posse. Aspargo será o adjetivo que assumirá durante toda sua adolescência.

Ao completar o bacharelado, a família Fleurier vai para Paris, cidade não muito agradável para o garoto. Ali, após a visita de seu primo Riri com quem convivera durante a infância e que achava pouco inteligente, Lucien teve uma nova certeza: a de que não existia. De acordo com a própria narrativa ele pergunta: “Quem sou eu? Eu sento na escrivaninha, olho o caderno. Chamo-me Lucien, mas isso não é senão um nome (...) Não serei nunca um chefe. Pensou com angústia: ‘Mas que vou ser?’ (...) ‘Quem sou eu?’ (...) Olhou ao longe (...) Lucien estremeceu e suas mãos tremeram: ‘É isso’, pensou, ‘é isso. Tenho certeza: eu não existo’.” Desta maneira, acreditava possuir um segredo que o fazia olhar com superioridade os outros – eles também não existiam. Em suas palavras, “o mundo era uma comédia sem atores”.

È interessante a maneira como Sartre brinca com a idéia cartesiana da certeza da existência. Em uma conversa com Babouin, professor de filosofia, Lucien pergunta se “seria possível sustentar que não existimos” ao que seu professor responde: “Coghito, ergo çoum[1]. O senhor existe, pois duvida da sua existência”. É sabido que Sartre argumenta que são os outros que “me conferem a existência”.

Retornado a Férolles, Lucien observa que muita coisa está diferente. Com a morte do funcionário mais devoto da fábrica, todos na cidade haviam perdido grande parte do respeito por seu pai. Ao que parece, Sartre quer se remeter ao descrédito que o poder burguês logra e o crescimento das esquerdas por toda Europa durante a década de 20. O garoto, já entre dezesseis ou dezessete anos, resolve que o suicídio era a maneira mais legítima para acabar com o dilema de sua não-existência – o próprio sentimento do nada. Não era somente a angústia que o levava a pensar assim, mas, sobretudo, o desejo de servir como mártir. Ao invés de um tratado sobre o nada, sua morte. Todos refletiriam muito mais.

Ao inserir o personagem de Berliac, um colega de Lucien durante os estudos preparatórios, a narrativa aprofunda na discussão com a teoria psicanalítica freudiana dos complexos. Esses últimos dariam uma fundamentação à existência vazia de significados. Sabendo o que originava as ações inconscientes, o indivíduo aceitaria a irresponsabilidade de seu caráter e atitudes geradas por ele. É o que sentiu Lucien acreditando que isso justificaria sua existência, mas os atos estranhos de seu amigo – como o de levantar a roupa de sua mãe enquanto dormia – o levou a afirmar: “é bonito ter complexos, mas é preciso saber resolvê-los em tempo”.

A amizade com Berliac é o gancho para uma das figuras mais interessantes do conto, Bergère, um pintor e escultor surrealista que se baseava nas idéias de Freud para compor suas obras. Foi a ele que Lucien confessou mais profundamente suas dúvidas existenciais, como o desejo de suicídio. O conforto surge no momento que tudo isso é classificado como um desajustamento, componente necessário para o brilhantismo e criatividade - como o fora para Rimbaud, escritor e poeta francês bastante prematuro que deixou de produzir aos 21 anos e se tornou guerrilheiro morrendo aos 32. No entanto, a aproximação de Bergère revela outra coisa, um desejo homossexual de possuir Lucien, que acaba cedendo em uma viagem. Por esse motivo, este sente sobre si todo o peso da moral e se considera um pederasta. Buscando racionalizar o acontecimento, Lucien passa a agir de uma forma que avalia ser moralmente correta, afinal, não esperava que os funcionários de seu pai aceitassem um homossexual como seu chefe.

Em 1939, Sartre ainda não tinha consciência do que o anti-semitismo seria responsável nos próximos seis anos. No entanto, antecipa suas conseqüências através de reflexões trazidas pelo próprio texto. Ao entrar num grupo político nacionalista e racista convidado por André Lemordant, um colega de escola, Lucien torna-se um de seus principais oradores e militante. Pensava que uma luta política preencheria o vazio deixado pela descrença nos complexos freudianos. Além disso, essa luta reavivava seu espírito de liderança e sua moralidade abalada por sua relação com Bergère. Suas práticas anti-semitas podem ser observadas em dois momentos: o primeiro é quando espanca um judeu na Rue Saint-André-des-Arts com seus colegas e o segundo num encontro com Guigard e Maud, sua irmã, quando recusa a apertar a mão de outro judeu. O restante da narrativa seguirá no sentido de esclarecer que a posição assumida por Lucien diante desse novo grupo lhe conferirá a certeza de que estava preparado para ser o grande chefe que sonhava desde pequeno.

O conto “A infância de um chefe” é um texto atraente que leva a várias reflexões. Mas o leitor que espera reconhecer nele elementos da filosofia sartreana de maneira imediata se sentirá frustrado. Embora esses elementos existam implicitamente no texto, somente um conhecimento prévio do conjunto filosófico de Sartre e dos inúmeros debates estabelecidos com a sociedade de sua época poderá trazer-lhes à luz.


[1] Transliteração fonética francesa do latim ‘Cogito ergo sum’ (Nota do próprio Sartre).


Texto publicado em 2005.


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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Vamos falar dos desejos...


Não que queiramos ser urubus, vivendo sempre às voltas da putrefação da humanidade. Eles produziram tudo, e nós sonhamos com seus frutos, como se isso nos fizesse árvores. Não que queiramos habitar as ruínas do mundo, nas redondezas continentais da esfericidade da Gaia. Eles construíram em seus vôos noturnos, mas nós sequer somos corujas. Teríamos sido enganados ou apenas preferimos a ilusão de estarmos edificando algo infinitamente elevado? Enquanto não seguramos as rédeas do futuro, não caminhamos adiante. Mas gostamos do cheiro das velharias, enchendo nossos quartos do des/agradável incenso das mentes que nos hipnotizaram. Por isso, somos aves entorpecidas pelo fedor que vem debaixo, e não enaltecidas pelo perfume etéreo de uma inexplorada genialidade. Não que queiramos ser urubus, mas isso é preferível a não ser nada. Comer da vida, produzir a vida, expandir a vida é muito mais difícil do que encontrar a podridão pronta nos aterros da grandiosa sabedoria dos inumeráveis outros. Não que queiramos ser urubus... Mas também não queremos ser ratos. Há alguém se alimentando do nosso esgoto?
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domingo, 7 de fevereiro de 2010

A caixinha...


Aqui estão vocês, possuidores de tudo aquilo que chamam de racionalidade. Agora, abra-se a caixa. Seria melhor que permanecesse fechada. Querem que continue aberta? Podem fechá-la? Ela é pequena demais para dela sair muita coisa, mas é assustadoramente grande para que nela habitem aqueles que por ela entram. Assim, a surpresa não está no que dela sai, e sim naquilo que por ela entra. Não, ela não é uma espécie de buraco negro, que compulsoriamente captura o que está ao seu redor, aprisionando no mistério seus objetos. Os que na caixa entram o fazem porque querem, e saem se quiserem. Resta saber se vão querer sair. Apenas uma dica: enquanto espiam o interior da caixa, vocês devem saber que seus corpos ficam do lado de fora, mas seus pensamentos vagarão por entre as surpreendentes trilhas deste ínfimo, porém infinito mundo. Ouçam a melodia... Ouçam os outros sons que a ela se unem... São eles, todos eles... Antes eram três, depois, quatro, cinco... Ouçam! É por ali que passa a harmonia, pelas sendas que só se mostram à penumbra, e aqueles que por elas caminham têm a sensação crepuscular, embora sempre vejam o nascer de um sol. Ouçam e caminhem... e pensem. Abre-se a caixa... surrealista...
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