A edição integral de “Le Mur”, título original de “O muro”, de Jean-Paul Sartre teve sua primeira edição em 1939, na França. A obra é dividida em seis contos – “O muro”, “O quarto”, “Erostrato”, “Intimidade” e “A infância de um chefe” – da qual destacaremos o último deles. A publicação desta obra se dá um ano após o lançamento do principal romance do autor, “A náusea”, que, junto de outros títulos, é parte de uma extensa lista de romances e peças teatrais que figuram ao lado de suas obras filosóficas. A presente resenha faz uso da tradução em português de Alcântara Silveira para a coleção Círculo do Fogo da editora Nova Fronteira.
Deixando de lado a densidade de um texto filosófico, as obras literárias de Sartre possuem a simplicidade e a sedução da linguagem de um literato sem perder a profundidade dos temas abordados. Há uma combinação dos vários elementos que permeiam sua filosofia de forma bastante envolvente. No caso do conto “A infância de um chefe”, classificado por alguns críticos como uma espécie de novela, o autor demonstra seu talento unindo de maneira bem descritiva o momento histórico francês, o perfil dos personagens e algumas idéias que se consolidavam no período entre guerras (1919-1939), entre elas a psicanálise freudiana.
O protagonista de “A infância de um chefe”, Lucien Fleurier, é um adolescente que nasceu pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Todavia, o leitor pode encontrar alguma dificuldade para situar os momentos de sua vida. Um dos motivos é que Sartre não revela sua idade em nenhum instante. Outro motivo é a ausência de datas, sendo necessário um conhecimento prévio do contexto europeu no ínterim do conto. Um dos indícios contextuais é a referência ao revanchismo francês, sentimento gerado pela perda da região da Alsácia-Lorena para os alemães após a guerra franco-prussiana (1871) e que perdura até a homologação do Tratado de Versalhes (1919). Há, ainda, outro obstáculo para o leitor estrangeiro: a confusão que pode ser feita decorrente da vida escolar dos garotos franceses – um exemplo claro é quando a narrativa alude ao fato de Lucien ter concluído o bacharelado na École Saint-Joseph enquanto, ao que parece, ter completado apenas o ensino fundamental.
Lucien é filho único de um casal burguês, Senhor e Senhora Fleurier, da cidade de Férolles. Desde muito pequeno, conviveu com a bajulação dos empregados de seu pai, principalmente durante o crescimento do poder liberal-capitalista, que posteriormente, grosso modo, será responsável pela Primeira Grande Guerra. A narrativa imerge no mundo infantil explicitando as primeiras dúvidas que buscam afirmar a identidade de um indivíduo diante do mundo, dos outros e de si mesmo. As perguntas, “será que existo?”, “o que sou para os outros?” e “o que é o mundo que me cerca?” estarão presentes o tempo todo.
Fazendo um paralelo com a teoria psicanalítica – bastante explorada no conto – as dúvidas começam pela questão do que a mãe de Lucien realmente significava para ele. Uma passagem a ser enfatizada é a pergunta do vigário sobre quem mais amava: Nosso Senhor ou ela. Lucien ficou confuso em relação ao que realmente sentia. Destarte, após uma reflexão em seu jardim, decidiu que não gostava da mãe. Por outro lado, nas palavras do autor “Embora sem se sentir culpado, recobrou seus carinhos, porque pensava que devia fingir sempre amar os pais, senão seria um menino ruim”. Em seguida, empenha-se em descobrir de que são feitos os objetos a sua volta e o que representam as pessoas que o cercam. Conclui que os nomes não são nada, ou pelo menos, só são alguma coisa se significarem algo para quem os diz. Ora, ainda que isso pareça prematuro para uma criança de cinco ou seis anos, Sartre foi bastante feliz ao lidar com a curiosidade infantil que, aos poucos, vai delimitando seu mundo.
Em uma visita à fábrica de seu pai, Lucien decide que também será um chefe. Este projeto pueril permeará toda sua adolescência. Observa-se um constante enfrentamento diante de outras decisões e posturas com um único propósito: saber se essas decisões e posturas o tornarão um chefe tão bem sucedido e certo de seu papel como o Senhor Fleurier. Um exemplo claro é quando, no fim da adolescência, evita ter um caso com uma empregada de seus pais, Berthe, por considerar que isso mancharia sua honra na cidade onde se tornaria patrão. Ora, isso é mais um dos temas demasiadamente discutidos na filosofia sartreana, o projeto como a busca existencial do indivíduo e que realiza a liberdade, parte fundamental da estrutura ontológica do ser humano.
Ao entrar na escola, entre seis e sete anos, Lucien terá uma experiência muito trabalhada por Sartre em suas obras filosóficas: o olhar do outro. Dentro do banheiro acha engraçada a inscrição que chamava seu colega de classe, Barataud, de percevejo por ser pequenino. No entanto, ali também havia outra que o chamava de grande aspargo por ser bem maior que o resto de seus colegas. A partir desse dia, sentia-se incomodado pensando que todos o observavam, até nos momentos mais íntimos. Na classe, queria mudar de lugar para que os outros não o vissem pelas costas – ângulo que não se pode ter posse. Aspargo será o adjetivo que assumirá durante toda sua adolescência.
Ao completar o bacharelado, a família Fleurier vai para Paris, cidade não muito agradável para o garoto. Ali, após a visita de seu primo Riri com quem convivera durante a infância e que achava pouco inteligente, Lucien teve uma nova certeza: a de que não existia. De acordo com a própria narrativa ele pergunta: “Quem sou eu? Eu sento na escrivaninha, olho o caderno. Chamo-me Lucien, mas isso não é senão um nome (...) Não serei nunca um chefe. Pensou com angústia: ‘Mas que vou ser?’ (...) ‘Quem sou eu?’ (...) Olhou ao longe (...) Lucien estremeceu e suas mãos tremeram: ‘É isso’, pensou, ‘é isso. Tenho certeza: eu não existo’.” Desta maneira, acreditava possuir um segredo que o fazia olhar com superioridade os outros – eles também não existiam. Em suas palavras, “o mundo era uma comédia sem atores”.
È interessante a maneira como Sartre brinca com a idéia cartesiana da certeza da existência. Em uma conversa com Babouin, professor de filosofia, Lucien pergunta se “seria possível sustentar que não existimos” ao que seu professor responde: “Coghito, ergo çoum
[1]. O senhor existe, pois duvida da sua existência”. É sabido que Sartre argumenta que são os outros que “me conferem a existência”.
Retornado a Férolles, Lucien observa que muita coisa está diferente. Com a morte do funcionário mais devoto da fábrica, todos na cidade haviam perdido grande parte do respeito por seu pai. Ao que parece, Sartre quer se remeter ao descrédito que o poder burguês logra e o crescimento das esquerdas por toda Europa durante a década de 20. O garoto, já entre dezesseis ou dezessete anos, resolve que o suicídio era a maneira mais legítima para acabar com o dilema de sua não-existência – o próprio sentimento do nada. Não era somente a angústia que o levava a pensar assim, mas, sobretudo, o desejo de servir como mártir. Ao invés de um tratado sobre o nada, sua morte. Todos refletiriam muito mais.
Ao inserir o personagem de Berliac, um colega de Lucien durante os estudos preparatórios, a narrativa aprofunda na discussão com a teoria psicanalítica freudiana dos complexos. Esses últimos dariam uma fundamentação à existência vazia de significados. Sabendo o que originava as ações inconscientes, o indivíduo aceitaria a irresponsabilidade de seu caráter e atitudes geradas por ele. É o que sentiu Lucien acreditando que isso justificaria sua existência, mas os atos estranhos de seu amigo – como o de levantar a roupa de sua mãe enquanto dormia – o levou a afirmar: “é bonito ter complexos, mas é preciso saber resolvê-los em tempo”.
A amizade com Berliac é o gancho para uma das figuras mais interessantes do conto, Bergère, um pintor e escultor surrealista que se baseava nas idéias de Freud para compor suas obras. Foi a ele que Lucien confessou mais profundamente suas dúvidas existenciais, como o desejo de suicídio. O conforto surge no momento que tudo isso é classificado como um desajustamento, componente necessário para o brilhantismo e criatividade - como o fora para Rimbaud, escritor e poeta francês bastante prematuro que deixou de produzir aos 21 anos e se tornou guerrilheiro morrendo aos 32. No entanto, a aproximação de Bergère revela outra coisa, um desejo homossexual de possuir Lucien, que acaba cedendo em uma viagem. Por esse motivo, este sente sobre si todo o peso da moral e se considera um pederasta. Buscando racionalizar o acontecimento, Lucien passa a agir de uma forma que avalia ser moralmente correta, afinal, não esperava que os funcionários de seu pai aceitassem um homossexual como seu chefe.
Em 1939, Sartre ainda não tinha consciência do que o anti-semitismo seria responsável nos próximos seis anos. No entanto, antecipa suas conseqüências através de reflexões trazidas pelo próprio texto. Ao entrar num grupo político nacionalista e racista convidado por André Lemordant, um colega de escola, Lucien torna-se um de seus principais oradores e militante. Pensava que uma luta política preencheria o vazio deixado pela descrença nos complexos freudianos. Além disso, essa luta reavivava seu espírito de liderança e sua moralidade abalada por sua relação com Bergère. Suas práticas anti-semitas podem ser observadas em dois momentos: o primeiro é quando espanca um judeu na Rue Saint-André-des-Arts com seus colegas e o segundo num encontro com Guigard e Maud, sua irmã, quando recusa a apertar a mão de outro judeu. O restante da narrativa seguirá no sentido de esclarecer que a posição assumida por Lucien diante desse novo grupo lhe conferirá a certeza de que estava preparado para ser o grande chefe que sonhava desde pequeno.
O conto “A infância de um chefe” é um texto atraente que leva a várias reflexões. Mas o leitor que espera reconhecer nele elementos da filosofia sartreana de maneira imediata se sentirá frustrado. Embora esses elementos existam implicitamente no texto, somente um conhecimento prévio do conjunto filosófico de Sartre e dos inúmeros debates estabelecidos com a sociedade de sua época poderá trazer-lhes à luz.
Texto publicado em 2005.