quinta-feira, 4 de março de 2010

Cultura Fast-Food


Muito se falou até os dias atuais de cultura de massa e da famigerada indústria cultural, como se ambas fossem o último estágio de uma sociedade alienada e decadente. No entanto, afirmo que os críticos da sociedade novecentista estavam equivocados: a massificação não era o fundo do poço. Se me permitem, meus leitores, gostaria de dizer que vivemos em tempos da pós-massificação, caracterizada pela “imediatização superficializada”.

Algo para a massa, ou melhor, a cultura de massa, exige tempo para ser preparado e, ademais, muito dinheiro (foi isso que fizemos no século XX na arte em série, substituímos genialidade por dinheiro). Lotar cinemas, estádios, alcançar vários espectadores pela televisão, vender livrinhos melodramaticamente açucarados, ganhar discos de ouro nunca foi algo muito barato.

Porém, tudo precisava ficar menos dispendioso sem deixar de ser vendável. Foi quando alguém teve a ideia de dizer que as pessoas estavam demasiadamente atarefadas e com pouquíssima disposição para algo que demandasse vinte ou trinta minutos. As coisas passaram a ficar mais velozes, inclusive nossos supercomputadores aos quais esmurramos se demorarem mais do que dois ou três segundos para abrir um programinha qualquer. Está certo que tenhamos urgências, mas devemos viver na urgência? A comodidade é boa, mas não seria bom um pouco de exercício cerebral?

O tempo das cartas foi substituído pelo dos e-mails, os quais foram perdendo a vez para os scraps, a leitura de um livro perdeu lugar para as revistinhas (que são até de saborosa apreciação), os jornais impressos ficaram à sombra das notícias instantâneas da internet, que acabaram eclipsadas pela admirável prática da “twitagem”. A informação não é mais processada, verificada, peneirada, ruminada, assimilada. Ela vem aos montes e tão rapidamente que os olhos são obrigados a se tornarem verdadeiros corredores de cem metros rasos. Talvez nossos órgãos dos sentidos estejam sofrendo por causa preguiça mental que nos é cada vez mais comum.

Penso que a arte é a que mais sofre com tudo isso, a começar por sua descartabilidade. Não é para menos: o que tem pouca qualidade, escasso conteúdo, raríssimo comprometimento e nenhuma devoção deixa muitas arestas, buracos, rachaduras e fácil dissolução. É como se o cérebro não mais suportasse música longas, um texto com mais de meia página, uma escultura que fosse algo mais do que bonequinhos de decoração de festas infantis, filmes densos (mas não chatos)...

Hoje, aprendi a escrever a metade de uma palavra numa caixinha de busca, apertar um botão chamado “enter” e esperar alguns breves instantes para receber tudo fresquinho em casa. Mas, acho que nem sempre o mais fresco é bom para a digestão. É preciso avaliar o valor nutritivo, ter certeza de que a mente está sendo bem alimentada, que os sentidos estão degustando prazerosamente. Seria até melhor se soubéssemos quem faz nossa comida intelectual de cada dia, o que nem sempre é possível.

Comer fast-food de vez em quando não faz muito mal, mas todo dia... Será que não nos enjoamos? E a boa e velha comida da vovó? Pois é, acabei me esquecendo... Ela demora muito para ficar pronta, não é? Por caridade, alguém nos livre de termos estômagos e intestinos fracos! Não queremos só cultura, queremos a boa cultura...


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quarta-feira, 3 de março de 2010

A fotografia


A máquina fotográfica estava sobre a mesa. “Por que logo à penumbra? Perguntou-se”. Tudo ao redor estava em profundo silêncio, como se uma letargia tomasse conta da atmosfera. Nada poderia querer ser visto, tampouco, fotografado. Sobre a poltrona de leitura estava ele, carregando sobre si o cansaço de mais um dia. Sua vontade era de se entregar ao sono, mas os olhos insistiam na contemplação da quase escuridão, das silhuetas das coisas, da visão turva do espaço. Lembrou-se da infância, de momentos que só estavam em sua memória por pura nostalgia. Veio à mente aquela viagem, quando antes do alvorecer, seguiam de carro ele e a família no mais absoluto ermo. Recordava-se da música que tocava na rádio feita para acariciar os ouvidos e acalmar a alma, do cheiro do mato ainda molhado pelo sereno, e da ausência amada que preenchia tudo. Queria trazer aquele instante ao presente, segurá-lo sem deixar escapar. Porém, dele só guardava fugidia lembrança. Para ser bem honesto, às vezes temia que parte daquele pensamento se confundisse com algum sonho que tivera no passado muito mais do que se relacionasse com o que de fato se passou.

Nos últimos anos, investira grande parte da sua renda em seu passatempo favorito: fotografia. Sua máquina era uma verdadeira captadora do mundo. Era tão precisa que dava a impressão de se comunicar com o fotógrafo, ressaltando objetos desejados e desfocando os demais, colorindo alvos de acordo com o tom pedido para a circunstância. Cada foto era uma espécie de obra, um olhar proposital e, por isso, congelado. Ao olhar a máquina mais uma vez, perguntou-se: “O que são as coisas? Elas nem sabem que estou aqui, não são parte de mim nem eu delas, por que eu as desejo, por que eu as tenho?” Era estranho que mesmo sabendo que tudo ao redor era inanimado, nada deixasse de insistir em interpelá-lo. “Desgraça de solidão que nunca me deixa só!” Murmurou.

Quanto mais escurecia, mais era possível ouvir uma voz que vinha do fundo das coisas. Recostado à poltrona, não conseguiu evitar notar as fotografias dispostas pela parede na qual o ocre se acinzentava com a proximidade da noite. Havia três fotos emolduradas em madeira escura, uma espécie de tabaco. Numa delas, ao centro, havia uma bela jovem vestindo uma capa de chuva. A monocromia da imagem impedia de definir a cor dos cabelos, do elegante xale, do resto. Percebia-se que a fotografia fora tirada da interior de um café, pois se via o escorrer dos pingos de chuva pela vidraça e a placa que ela sustentava onde estava inscrito algo como “Café Noir”.

Aquele instante emoldurado falava mais do que se poderia imaginar. Eram as últimas gotas de chuva de uma tarde de primavera. O piso da calçada e os paralelepípedos da rua ainda estavam molhados, conservando algumas poças d’água e uma fina enxurrada que escorria até os bueiros. Não estava frio, mas uma brisa fresca de ar úmido penetrava pelas portas e frestas das janelas. Dentro da cafeteria, como sempre, estava ele sozinho numa mesa para quatro. O cheiro do capuchino e das massas se confundia com o perfume que a brisa trazia, dando-lhe uma sensação de conforto que era confirmada pelos tons pastéis da decoração do lugar. Como de costume, a máquina fotográfica permanecia imóvel sobre a mesa. Subitamente, sua atenção deixou as conversas e sorrisos dos demais clientes e se pôs em direção à moça que passava do outro lado da vidraça. Dava sinais de calma ingenuidade e total descompromisso afetivo. Aquela cena o fez desejar desistir de sua vida solitária em prol de um amor por aquela senhorita; ponderou um tempo sobre isso. No entanto, suas supostas convicções o impediram de levantar e ir aonde ela esta. De repente, ela olhou em sua direção. Foi quando ele pegou a máquina, destampou a objetiva, apontou o canhão e acionou o obturador: o exato instante estava capturado. “Era melhor que fosse assim”, pensou, “a maneira como lidamos com eventos que parecem cruciais determinam irrevogavelmente suas consequências”. Para ele bastava aquele olhar, inalterado num quadro em sua parede.

Ainda imerso em devaneios causados pela visão da fotografia, não se conteve, passando a refletir sobre o que teria acontecido se tivesse a coragem de abordar aquela jovem naquela tarde. Sua mente divagava sobre como teria sido o flerte, o primeiro beijo, o namoro... Sem que se desse conta, seu pensamento já não mais estava no passado, mas no presente. Seu aparamento havia mudado completamente. O ambiente estava tomado por um sentimento diferente, os sofás não estavam mais nus, mas se achavam cobertos por mantas coloridas, os quadros na parede adquiriram novas cores... No sofá maior da sala estava ela, deitada, com um sorriso nos lábios, como se o convidasse para que se deitasse ao seu lado – seu perfume era inebriante. Uma forte buzina na rua o trouxe de volta do quase transe. Prontamente, o apartamento voltou a ser como antes, mais escuro no entanto. Ela já não estava mais ali. O silêncio dos objetos o repreendia, como se quisessem dizer: “Não deveríamos estar aqui, resignadamente daríamos nossos lugares para outros”. Olhou novamente à volta e entendeu o que tudo aquilo significava, e como se pudesse falar com as coisas, disse: “algumas de vocês ainda não sei por que possuo, mas outras só as tenho porque conseguem me dar minhas ausências”. Voltou o olhar para a máquina de fotografar e falou baixinho: “Por isso você é minha melhor amiga, minha caixinha de ausências”. Pensou que se um dia revisse a moça da fotografia, se um dia pudesse ela pudesse romper sua solidão, sua máquina continuaria a guardar seus pedaços mais preciosos de vida...


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terça-feira, 2 de março de 2010

A ironia do ser (em pseudo-aforismos)


A certeza... Quem é o dono de uma inteligência inigualável, que interpreta como nada mais o universo, racional por essência, lugar pelo qual falam todas as coisas? Se o leitor respondeu o homem acertou. Sem dúvida, tudo o que o homem pensa de si é verdadeiro. O ser humano não conhece, coloca algo novo na realidade. Por isso, o conhecimento incompleto não procede, pois é o ainda não pensado e o que não foi pensado é o não realizado. É o homem quem realiza a realidade. A natureza é o espelho do homem. Ela não diz quem somos, uma vez que só existe porque dizemos quem e o que ela é. O grande ser que é o homem habita o mundo para criar reflexos de si, pequenas cópias de humanidade.

Um pouco de ceticismo... Heráclito nos falou de certo erotismo do ser. Este não mostra tudo o que poderia revelar. Sempre que desvela, continua a velar o resto de si. Situado num ponto do real, o homem é incapaz de ter a visão do absoluto. A verdade se dá de forma caprichosa, e só se pode torcer por sua boa vontade. Descartes cogitou um gênio maligno, que nos enganaria, fazendo-nos acreditar em grandes engodos – embora, depois, o tenha descartado. E Hume (é só digitar no buscador preferido que você fica sabendo rapidinho quem foi ele)? Soube como ninguém colocar a crença na razão na berlinda... O homem se viu obrigado a repensar sua própria essência para ver se encontraria alguma.

Um palco para a comédia da história... Talvez seja muito mais engraçado que não apenas um, mas bem mais que seis bilhões de indivíduos atuem num imenso palco, pensando que são os protagonistas do universo. Quem sabe o ser não seja dono de um grande senso de humor? Isso se ele existir, diriam os céticos. Se não, a humanidade ainda carece de uma história universal mais engraçada e de um bom comediógrafo disposto a escrevê-la. Hegel e seus discípulos eram muito sérios para tal feito… O que há nos assim chamados destinos seria tão somente constantes tentativas frustradas, muita persistência, pouca caminhada intermitente em função dos incontáveis tropeços, alguma crença nos fins, várias buscas desorientadas. Pouco mais de um século depois de Nietzsche, que não é bem aquele do livro “Quando Nietzsche chorou”, e não encontramos nosso lugar no mundo e a nossa alegria com a Terra é geralmente acompanhada por fragorosos conflitos com a natureza.

Os novos dramaturgos do ateísmo... Os ateus pensam que são responsáveis pelo novo prólogo da história universal - os novos crentes do século XXI. Parece mesmo que o ser tem muito senso de humor.

O pseudo-realista... Os realistas acreditam que são os maiores críticos da dramaturgia do todo. Eles dizem: “Não se encantem com tanta beleza no mundo, ele é, de fato, só feiúra. Não lutem pela vida, pois tudo está fadado à dissolução.” São os literatos da ausência do nexo. E daí que as coisas sejam como esses homens acreditam ser? A maioria de nós quer mesmo um final feliz para o seu “era uma vez”... E muitos gostam da grande ficção.

Os gênios da caixinha... Ficção cara, vendida por pouco preço e lucro quase sempre garantido. Os pais dos eruditos da caixinha; esses sim produzem realidade de muito mau gosto.


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domingo, 28 de fevereiro de 2010

O causo da vingança


Aquele sujeito era um canalha. O tempo que insistiu no casamento era só por causa dos dotes culinários da esposa. Esta sabia muito bem que não competia com a amante do marido em relação à maioria dos outros quesitos. Porém, sua vocação para dona de casa e submissa a impedia de pedir o divórcio. Para piorar sua situação, aquele indivíduo tinha se casado sob o regime de separação universal de bens. A casa foi comprada por ele na época de solteiro, e a mulher não teria direito algum sobre ela.

Como era de se esperar, chegou o dia em que o marido chegou da rua com a notícia: “Quero me divorciar e você tem uma semana para sair da casa.” Engana-se quem pensa que ela se desesperou. Amor mesmo já não existia na relação, era tudo uma inconveniente conveniência. Esperta, utilizou o talento culinário para arquitetar a vingança. Certa manhã, pediu o quase ex-marido para buscar um quilo de peixe não limpo na peixaria, pois queria preparar uma moqueca para o almoço. Peixe em mão, esperou que o homem saísse para encontrar a outra e começou a colocar em prática o plano. Retirou as entranhas do bicho, por sua sorte, cheio de ovas, e cortou a carne em minúsculos cubinhos. Os pedaços a contento, começou a espalhá-los entre os trilhos das cortinas e os alisares das janelas de madeira.

No dia marcado, ela saiu da casa, deixando-a aparentemente limpinha para o agora ex-marido e sua nova dona. Algum tempo depois, o sujeito começou a sentir um cheiro terrível. Pensou que era o esgoto. Chamou os encanadores, que limparam todos os canos, caixa de gordura e de passagem, mas não resolveu o problema do odor. Em seguida, mandou que a nova esposa limpasse sofás, camas, guarda-roupa, geladeira, conferir se algum animal fazia suas necessidades ao redor da moradia. No entanto, nada se encontrou.

Não mais suportando o cheiro, resolveu colocar a casa à venda numa imobiliária. Não era uma mansão, mas era uma construção vistosa, e logo encontrou comprador; ainda mais pelo preço que pediu: só setenta por cento do valor de mercado. O melhor é que deixou todos os móveis e cortinas no imóvel; queria é se ver livre do constrangimento.

Os novos moradores entraram na casa. Era um casal. Não demorou muito para perceberem o fedor de peixe estragado. Para não gastar muito o tempo de leitor, vou resumir: tomaram as mesmas providências do antigo morador. Nada foi resolvido. Ninguém sabia dizer de onde vinha o cheiro. Quanto mais tempo se passava, mais séria a coisa ficava. O casal não recebia mais visitas e quando decidiu vender o imóvel, os possíveis compradores só aceitavam um preço bem abaixo do que realmente valia: trinta por cento de seu valor.

Foi quando a primeira moradora apareceu. “Quanto vocês querem por este imóvel fedorento?” Perguntou. “Pagando mixaria a senhora leva”, responderam os proprietários. Dinheiro na mão dos vendedores, a mulher ficou com a casa e todos os móveis. Na mesma tarde, pegou uma espátula, bons produtos de limpeza e não deixou nem a lembrança do peixe podre nos trilhos das cortinas e nos alisares das janelas. No final da faxina, pensou com seus botões: “Quem é que disse que eu não era a dona dessa casa”.

Detalhes da história: pagou as insignificantes prestações da casa com a pensão do ex-marido, o qual agora vivia num apartamento com três apertadíssimos cômodos e o melhor; era seu vizinho da frente...


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sábado, 27 de fevereiro de 2010

As estações de um escritor


Alguns escritores possuem suas sazões; é isso mesmo que você acabou de ler, sazões. Porém, não se pode esquecer que há leitores que também leem sob uma perspectiva sazonal, seus olhos são sazonais. É no interior da incongruência entre esses momentos, do escritor e seu leitor, que se estabelece o conflito extrínseco ao texto entre essas duas figuras. De um lado, o escritor que quer se expressar de acordo com a estação em que se encontra, do outro, o leitor que exige do texto que seus frutos sejam os específicos de seu tempo.

Dessa maneira, percebe-se o poeta, por exemplo, envolto sob a neblina de um inverno congelante. Seu tom é pálido, pouco intenso, mas com muita densidade, algumas vezes, apenas frio, noutras, melancólico. Algumas imagens que lhe vêm à mente causam acidez, vontade de vômito, sofreguidão, outras o deixam introspectivo, sem sentimento do mundo, sua terra é ele e nada mais. Na outra extremidade está o leitor, vivendo o esplendor do mais puro verão. Seu olhar é solar, iluminador, buscador de belezas, cores, sabores, temperos tropicais... Sua leitura, ao se deparar com a gélida profundidade do texto, indispõe-se, detesta o que está diante de seus olhos. Assim diz ele: “Como assim? Eu, no verão do meu apaixonamento com a existência, exposto a uma alma tão pessimista? Não, isso jamais!” Ora, ele quer sair de si, ir de encontro às coisas, roubar-lhes um pouquinho daquilo que possuem de melhor, enquanto a leitura o coloca em frente ao espelho de seu próprio ser.

Doutro modo vive o escritor primaveril. Sua escrita é somente nascimento. Não aceita ideias preexistentes. Algumas são dadas à luz antes do tempo, sem que tenham passado pelo devido amadurecimento. Mas, são alegres, multicoloridas, com cheiro de novas. São largamente compartilhadas pelo público da mesma estação, o qual as aproveita para voar e dançar com o máximo de ligeireza. No entanto, quando tal texto se acha nas mãos do leitor invernal, causa forte indigestão. Não há nele a austeridade exigida por sua condição. É mundo demais para um coração que preza a solidão.

No ápice de tudo isso, o escritor do verão coloca a folha branca em sua mesa. Ele a vê como a terra, precisando ser iluminada pela luz solar – ele é o sol. Despeja sobre suas páginas uma intensidade quase instintiva. O leitor atento será capaz de sentir um cheiro de suor em cada palavra. No texto, o mundo parece uma grande conciliação entre amor e ódio, paz e guerra, prazer e tédio, harmonia e caos, solução e tensão, vida e morte... Todavia, para alguns leitores, sobretudo, os invernais, nada é detalhe e toda intensidade é mera superficialidade. A vontade de vômito retorna, pois não conseguem ruminar tanta grandeza. São seres setentrionais, quase polares, com nenhuma disposição para os carnavais dos trópicos.

Por fim, embora devessem ser escritores pessimistas, habitam o mundo os escritores da beleza outonal do fenecimento. São verdadeiros pintores das cores tristes, mas que fazem a alma do leitor viajar num profundo devaneio. Subitamente, seus olhos não se encontram na folha. Não são mais as palavras que completam as frases, e sim, a imaginação, o pensamento sem direção. O olhar se perde enquanto as coisas ao redor ficam turvas. O espaço se transforma em horizonte. É como se a alma caminhasse para ele. Os ouvidos se abrem para uma música longínqua, um sussurro que chama. O ar seco, as folhas secas ao chão, as árvores em letargia, o poente em várias avermelhadas, é como se tudo isso tivesse falado ao escritor, cada um com o poder de tocar o leitor. Nesse estado, quem escreve não quer conflitos, quer a serenidade. Quem espera protesto, murmurações, cinismo, sarcasmo, pouca profundidade, intensa densidade, rigor, e outras coisas do tipo, talvez não se sinta bem ao ler uma obra de outono.

No entanto, há escritores que não vivenciam qualquer sazonalidade. Alguns são polares, outros equatoriais, alguns vivem no subterrâneo, outros nas alturas. Não importa, cada um tem algo a dizer se souber o que quer e como fazê-lo (livremente). É por isso, penso eu, que escrever deve ser um respeito a si mesmo e ler deve ser respeitosamente a aceitação do outro, mesmo que para isso seja necessário o conflito. Afinal, sem umas boas briguinhas verbais a literatura seria muito chata.


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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A madrasta malvada


Quando eu era pequeno, ganhei uma coleção de livros infantis, que se não me engano, chamava-se “A escada das virtudes” – ou mais ou menos isso. Uma historieta que me recordo é a “Madrasta malvada”. Ela falava de uma menininha que recebeu a ordem da mãe, que havia feito um pote de cookies, para que comesse só um após as refeições. No entanto, a bela garotinha não se agüentava, e entre os períodos da recomendação, comia um ou dois sorrateiramente. A mãe, esperta que era, logo descobriu que o esvaziamento do pote não condizia com a lógica da moderação. Como castigo, sentou sua filha no sofá e começou a contar: “Havia uma garotinha, parecida com a cinderela, a qual a madrasta sempre mandava mexer o leite fresco, ordenhado pela manhã, até que coalhasse. Porém, à medida que o coalho se fazia, vinha a mulher maldosamente e entornava outro tanto de leite. E assim fazia todos os dias da semana, sem se importar com o cansaço da enteada.” Enfurecida, a menina reprovou calorosamente a megera, ao que a mãe respondeu: “Pois é querida, a madrasta é você e a garotinha é seu estômago. Às vezes, ele precisa de um merecido descanso, o que tem como consequência bons hábitos e disciplina.” A criança sorriu e entendeu a lição. Lembro-me que após ter lido a história, deu-me uma vontade de comer cookies quentinhos com queijo minas... Uma boa receita não faria mal agora.
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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Delírios desinteressantes


(Momento ácido... Se estiver amando e muito sentimental, não leia, por favor)


Num gênio, pensamos que a loucura é um sintoma da genialidade. Há casos em que se acredita poder ser a própria causa do talento. Porém, cuidado. Existe muita gente por aí se passando por gênio, inventado delírios racionais para endoidar o resto da humanidade. Sua arte é vendida dentro de uma caixinha, ou caixão (desculpe se o termo parece um pouco nefasto), alguns até bastante fininhos, e alcança instantaneamente a todos que vivem o grande progresso da sanidade mundial. Não é algo pessoal. É que na grande farmácia globalizada, necessita-se criar algo para o adoecimento - a voz do capitalismo pede isso. Caso contrário, como serão vendidos os remédios? Telejornal só se passa por realidade porque tem muita gente que acredita que só se pode dizer a verdade com cara de sério (além de um apelo para o sensacionalismo, como alguns fazem). Arte mesmo, isso não é verdade, é pura invenção para entreter. Por isso, depois de um dia exaustivo de trabalho, deixe que eles entrem em sua casa, novelisticamente falando. Escute delirantemente suas vozes sussurrando: “não somos de verdade, somos devaneios de um gênio, vamos fazer a dança... Um passo para cá, outro para lá... Muito bem, você já sabe nos imitar... Agora, com sua mente descansada (quer dizer, vazia), assista a mais um momento coletivo de informação telepática (desculpe-me, quis dizer televisiva). Estamos formando sua opinião.” Será que ainda existe arte de verdade, e não só da verdade, dos gênios de verdade? Parabéns a todos, filhos do gênio do século XXI, os grandes eruditos da caixinha...


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O grande espetáculo da realidade


Como ocorria todas as semanas, mais uma vez a cidadezinha se reunia ao redor do coreto da praça. Os moradores daquela quase vila esperavam sempre ansiosos por aquele encontro noturno. Afinal, em que lugar pelas redondezas havia uma apresentação semanal como aquela? Fato é que todos se sentiam privilegiados. Interessantes eram os dizeres da faixa de pano que ficava sobre o palco improvisado: “Aqui representam os criadores da realidade.” O curioso é que nas ruelas as pessoas não pareciam tê-la lido bem assim. Elas sempre perguntavam umas as outras: “Você vai à praça ver a realidade?” A resposta era imediata: “Como poderia não ir? Como se tivesse algo melhor para fazer.”

Hora marcada, certinha, subia o apresentador:

- Caros munícipes, boa noite! Estamos felizes com sua presença para mais um capítulo da apresentação da realidade.

Todos aplaudiam calorosamente...

Poucos não haviam se esquecido do porquê da criação daquela espécie de espetáculo. No início, os dramaturgos gostavam de escrever peças coesas, progressões coerentes de capítulo a capítulo com histórias cheias de peripécias, tragédias, humor... Com o tempo, a audiência diminuiu. Muitos estavam enjoados de ver os mesmos papéis, apenas transmutados nos diferentes rostos e nomes das personagens.

Os dramaturgos pensaram:

“Vamos fazer uma peça sem script, na qual cada um será ele mesmo, pelo menos, aparentemente. Colocamos os atores no palco e não lhes damos um papel, e sim, um perfil. Cada um terá que desenvolver sua própria história. Um será o mocinho, outro o vilão, uma a santinha, outra a tentação, um o líder, outro o capacho e por aí vai... Vamos dar o nome de ‘apresentação da realidade’.”

Foi um sucesso! O espetáculo era certeza de praça cheia. Ao fim, as pessoas se regozijavam, dizendo:

- Como isso engrandece o nome da nossa cidade!

No entanto, para a surpresa dos empresários do negócio, a multidão foi diminuindo semana após semana. Foi quando um gênio da dramaturgia local disse:

- Vamos criar um “semi-script”. Colocaremos todos os atores e atrizes numa situação inicial na qual deverão desenvolver suas tramas a partir de ações irracionais e instintivas. Depois, pediremos que cada um, após cada ato, justifique superficialmente suas razões.

Os empresários não erraram por aceitar a proposta. Todos os recordes de público foram batidos. Entre todos os espectadores só havia um sentimento: a alegria por poder compartilhar com os atores, que agora eram pessoas comuns, a verdade nua e crua.

Foi um reboliço na cidade. Só se ouvia nas esquinas, nos bares, na escola, no hospital e até na prefeitura, uma fofoca institucionalizada: “Você viu aquele sujeito? Que sujeitinho não é?” Meses depois, crianças, jovens, adultos e velhos, homens ou mulheres já não acreditavam que havia realidade fora da pracinha. Eles estudavam de mentira, trabalhavam de mentira, dormiam de mentira, comiam de mentira, amavam-se de mentira... A verdade só podia se encontrar e se realizar na famosa “apresentação da realidade”. Além disso, muitos passaram a imitar os perfis de seus atores preferidos. É inimaginável quanta coisa instintiva e sem sentido começou a fazer parte da vida social da até então pacata comunidade.

Certo dia, enquanto todos assistiam a mais um espetáculo, alguém do meio da multidão gritou:

- Vocês se alegram por terem inventado e participado de algo original? Pois estes empresários e dramaturgos são uns copistas medíocres; não inventaram nada, só trouxeram para nós aquilo que já era espetáculo há muito tempo na grande cidade do outro lado da lagoa. E todos sabem o que aconteceu com ela; a metrópole falida.

No palco houve silêncio, entre o público pavor... Passados alguns instantes, alguém bradou:

Tirem esse louco daqui! Vamos interná-lo, pois está variando! Coitado, deve ser um asceta que não conseguiu colocar os pés no chão...

Expulso o baderneiro, todos se assentaram e calmamente retornaram para a realidade...

Eu, que por lá passei, conto um fato real e sem pretensão alguma. Porém, se o leitor preferir não acreditar, que pense: “Qualquer coincidência com a semelhança é mera realidade.” E tenho dito.

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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Antologias de um esquecido...


Aos que detestam... Simplesmente
Durante o dia, não maldiga o sol louvando a sombra;
Sem o sol, a sombra nada é;
Sem a luz, a escuridão tudo é;
Assim, não amaldiçoe o sol, apenas ame as árvores...

Não se indigne pela noite porque torna difícil o caminhar;
Sem escuridão, não há lugar para os pequenos brilhos;
Desconhecidas seriam as estrelas da madrugada;
Alegre-se em caminhar entre muitas;
Elas também iluminarão a caminhada...

Aos que esperam a poesia...
Ouça o ritmo, dance ao seu compasso em pisadas duras ou macias;
Veja a dança suave entre a rima e a métrica;
Rejubile-se com a salubridade das regras;
Suba a montanha das eras...
Porém, só habite entre mim se amar as palavras,
Ainda que não sejam poesia, ainda que sejam só poéticas.
Viva em minha casa,
Mesmo que não mais haja mais o ritmo, a rima, a métrica, as regras...
Colocaremos na porta uma placa:
Na casa dos sem poesia moram os que esperam pelos poetas...
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Desabafos de um não sedutor...


Antes de começar, quero esclarecer o título da crônica. Se o leitor mexer um pouco em meus escritos, verá que há algum tempo, escrevi um texto intitulado “Confissões de um sedutor”. Embora pareça absurdo, não foi pretensioso, da mesma forma que este não é despretensioso. Disse que a sedução não é mera arte, é um atributo. Não peço desculpas pelas palavras que causaram algum desconforto – e acho que isso ocorreu com frequência, tendo em vista a pouca receptividade que teve, ainda que tenha tido um número razoável de leituras nos meios em que foi postado. Talvez ocorra o mesmo com a crônica que você está lendo. Aliás, como geralmente recomendo, não acho que vai valer a pena você prosseguir em sua leitura. Se insistir, pelo menos, peço que não seja deselegante ao escrever xingamentos. É bom que se tenha bom gosto até para escolher as palavras com as quais iremos... Você sabe... Xingar alguém. Eu até tenho a opinião de que a ortografia da palavra xingar é muito feia... Deve ser algum preconceito com as palavras que começam com “xis”. Lembre-se dos conselhos do Che: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!”.

Voltemos ao problema do título. Caro leitor, você acha que me equivoquei no título do texto anterior, aquele que me referi acima? Não seria melhor se fosse “Conselhos de um sedutor”? Mas, isso não tem importância, pois parece que virou práxis literária. Se escrevo um livro querendo contar vantagens, dou o nome: “Confissões de...”. Porém, se minha autoestima está baixa ou quando tenho algo que vai me comprometer socialmente, dou o nome de “Desabafos de um...”. Por sua vez, não parece estranho que alguém escreva um texto exaltando qualidades de um sedutor e, pouco tempo depois, outro falando da sua incapacidade de seduzir? Cadê o princípio da não-contradição?

Seduzir... A arte de despertar os sentidos alheios, dar aos sentidos vontade própria, fazer com que os sentidos do seduzido tenham uma vida independente, sejam autonomamente seres pensantes, sem que existam sem o desejo.

Agora, não quero possuir mãos, pernas, seios, bocas... Quero abraçar mentes, debruçar-me em corações, enlaçar sonhos...

Não desabafo porque minha autoestima está baixa, mas porque querem que eu só seduza, enquanto eu gostaria apenas de uma boa conversa, um bom chocolate quente, um olhar entre amigos, um passeio pelo parque... Desabafo porque a sociedade contemporânea, do culto ao corpo, sentidos e instintos, exige que eu apenas seduza para estar entre pessoas, ou melhor, entre prováveis objetos sexuais. Enquanto o tempo passa, a idade adianta, os cabelos embranquecem, passo a ver o quanto é bom estar somente entre amigos, amar apenas a quem respeitosamente me seduziu, não ser excluído só porque não quero seduzir ou ser seduzido, estar com alguém só para contemplar as montanhas douradas ao entardecer, sem que ambos nos notemos, embora a outra presença enriqueça o instante.

Desabafo... Hoje é o dia de todos nós, sedutores ou não, seduzidos ou não... É a manhã para a vida plena de vontade de ser... É isso, tolerância ao simples ser, ao ser simplesmente, ao ser exultante/mente...

Desabafo... Pela tristeza que engrandece, pela alegria que não se contém.

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domingo, 21 de fevereiro de 2010

Domingo


Ele estava “endomingado”, diriam uns. Era uma roupa diferente daquela que usava durante a semana. O dia estava claro, mas não fazia muito calor. Caminhava entre os arbustos que ladeavam a escada da igreja. Ninguém parecia notá-lo, aquele mundinho, tão pequeno, parecia ser todo seu. Olhava os insetos que subiam pelas plantas, pegava alguns pelas asas, jogava outros para o alto para ver se voariam...


Subitamente, um som rasgou o barulho da multidão. Ouviu seu nome e uma recomendação: “meu filho, não faça isso, você vai sujar sua roupa, venha para cá!”. Mesmo assim, nenhum olhar alheio o notou. Sua mãe, ao perceber que atitude da criança não havia mudado, esqueceu-se dela. Ali estava ele, em seu mundo, vivenciando cada instante de um breve momento de pura felicidade, sorrindo para as coisas mais minúsculas e insignificantes.


Quem poderia julgar que o menino sabia que era domingo? Mas, talvez, fosse possível imaginar que ele sabia que o domingo era todo dele... Isso se alguém considerasse sua existência.
Enquanto se divertia, os sinos badalaram. Todos deveriam entrar. As brincadeiras deveriam parar, as crianças sossegar, o ar se entristecer. Ali, naquele lugar, por rápidos segundos, o contraste se fez: o menino, solitário, com um rosto alegre, exultante, e os adultos, juntos, compungidos, contristados, pálidos...


Em meio à plena descontração, sentiu um forte solavanco. Sua mãe o puxou pelo braço, com a feição de raiva. “Por que ele não a ouvia?” Deve ter se perguntado aquela senhora. Assim, a solavancos, entraram ambos pelos portais da igreja. Ele, choroso, porém, irreverentemente, sentou-se em um banco. Olhava de um lado para o outro, como se estivesse enfastiado com cada segundo que se estendia, teimando para se tornar interminável.


As canções foram cantadas, as palavras ditas, os olhos fechados... Nada disso parecia importar. Quando tudo parecia perdido, ele olhou para os nós da madeira dos bancos e começou a alisá-los com os dedos. Dava a impressão de que eles eram caminhos, desenhos, lagos, tudo, menos partes de um banco. Sua face se tornou novamente tranqüila, serena, alegre. Entre as pessoas, nada mudou. Todos continuavam sérios, atenciosos, distantes...


Foi assim, passando as mãos entre os nós, fazendo voltas com os dedos, que pela primeira vez outra senhora o notou. Quem a viu não entendeu, mas ela sorriu também. Não, eu não a conhecia. Isso não importa, nunca vou esquecê-la. No entanto, não compartilhei com eles aquela felicidade mútua, aquela alegria de domingo...


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sábado, 20 de fevereiro de 2010

O nome que diz...


Não diga o que quiser, apenas pronuncie o nome... Deixe que ele escorra da sua boca, involuntariamente... Que seja natural, sobrenaturalmente, com a língua em transe. Permita que ele encontre meus ouvidos... Cante esta palavra que se faz só nossa, que me traz seu rosto, suas mãos, seu cheiro... Sua alma... O nome que é você através do som dos seus lábios. Que seja ouvido ao adormecer como uma canção de ninar, ao acordar como o canto matinal dos pássaros, ao meio-dia como afago no meio da agitação cotidiana... Enquanto... Durante... Sempre... Que meu nome se una ao seu e que ambos se apaixonem, provoquem um ao outro, que queiram fazer amor... Que façam amor... Que nasça disso um filho, um novo nome: Deleite/Eternidade... E ainda que você não esteja mais aqui, mesmo que seja dura a lembrança, não importa, restará algo: o nome... Aquele que infinitamente diz...
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A prece...


Ali estava ela, de joelhos... Silenciosa por fora, plena de murmúrios por dentro. Percebia-se isso pelo retesamento do rosto, pelo movimento dos lábios, pelos olhos fechados... Quem a olhava via alguém no mais profundo de si, visitando as entranhas do próprio ser. Uma alma que transcendia aquele espaço.

O tempo parava em torno dela. Todos os objetos em torno pareciam ter se tornado grandes ouvidos. Tudo a contemplava fixamente. Nada, absolutamente nada, ousava falar. Dos sinos, só se ouvia o ressoar das últimas badaladas... Calmamente... Sonoricamente... Decaindo.

Nada era vivo... Nada era fúnebre.

Os outros que entravam no templo, ao olharem aquela figura ajoelhada ao centro, também se calavam, caminhando levemente. Alguns queriam fechar os olhos, mas não conseguiam. Estavam unidos aos objetos. Tornaram-se somente ouvidos... Espírito e divagação.

Pelas janelas, uma fresca brisa penetrou, balançando as folhagens nos vasos, os fil ós, as guirlandas... Foi lentamente até tocar os cabelos dela, os quais se entregaram a um breve movimento. De pronto, uma lágrima, apenas uma, correu dos olhos dela. Nesse instante, o silêncio foi quebrado por um suspiro...

Um rápido suspiro e... Seu rosto estava como antes, numa contrição comovente. Era todo angélico... Só isso bastaria para torná-lo belo.

Todo temor do mundo estava presente. Todo tremor se fazia sentir...

A aura estava intacta, enquanto as cores do céu dançavam ufanosamente, sempre se transformando. Alegria celeste, tristeza bela... Sofrimento gostoso que se continha... Infindável.

Um vazio nostálgico tomou conta da atmosfera. Foi quando os sinos badalaram. Eram seis da tarde. Uma, duas, três... Seis badaladas. Seu tom era solene, como o resto do universo. Era sublime.

A igrejinha ficava no alto daquele morro, destacada pela paisagem. Era reverenciada pelas velhas casinhas.

Era a hora em que suas luzes se acendiam, todas num amarelo profundo. Elas diziam: aqui tem gente assim, com vontade de chorar também. A pequena vila esperava... Tudo esperava que ela saísse por aqueles portais. Todos se preparavam para o cortejo.

Lá dentro, os olhos dela se abriram, levantando-se sem que mirassem um ponto fixo. Sequer olhavam o horizonte. Em sincronia, ela também se levantou. As luzes do templo ainda estavam apagadas. Só as velas iluminavam seu caminho. Era tudo muito pequeno, tudo tão imensamente completo... Era só o infinito.

Andou até o portal e saiu... Desceu a ladeira enquanto todos a observavam pelas janelas. Aos poucos, sua silhueta foi se confundindo com a escuridão noturna. Diante da pálida e plácida admiração alheia, desapareceu... O calor daquela noite era confortável. Foi quando minha mãe me disse: terminou meu bem, agora sim terminou...


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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Confissões de um sedutor...


A sedução não é apenas uma arte, também é uma característica. Seduzir é despertar a atenção dos sentidos alheios para aquilo que se dá como um objeto de desejo... É tornar-se tal objeto. Para além disso, é ser capaz de enlouquecer o mais lúcido ser humano, assumindo a forma de todos os eventos possíveis do mundo, transformando-se no único que vale ser amado.

Engana-se quem julga mal um sedutor. Não imagino grande amor que não tenha surgido de uma sedução – tampouco uma profunda desilusão. Aliás, bem lá no fundo há sempre uma vontade que tende para o outro, para a entrega erótica, um apelo pela própria conquista. São incontáveis aqueles que passam uma vida inteira na busca por ser seduzido.

Lembro-me de Sören Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX, que tentou expressar com maior propriedade o que seria um sedutor. No entanto, ele sempre falou da própria experiência: um homem que foi ao mesmo tempo sedutor e seduzido. Sua paixão quase acética pela senhorita Regine Olsen fez nascer nele alguém que viveu em função de se fazer percebido por uma mulher que talvez o negligenciasse apenas porque jamais conseguiu lhe esquecer. São suas as seguintes palavras:

“O que sou? O simples narrador que segue os teus triunfos; o bailarino que se curva sob os teus passos quando te ergues na leveza da tua graça; o ramo sobre o qual te repousas um instante quando estás casada de voar; a voz de baixo que se submete ao devaneio do soprano, para deixá-lo subir ainda mais alto – o que sou? Sou o peso terrestre que te prende à terra. Então, que sou? Corpo, massa, terra, pó e cinzas...” (Diário de um sedutor).

Seria essa sua verdadeira posição, um submisso ao amor? O quanto de ironia há nisso? O certo é que o sedutor sabe qual é seu preço: nem muito nem pouco, somente o suficiente. Ele nunca se dá gratuitamente. Sabe que se for extremamente barato, satisfará apenas desejos, mas se custar algo realizará sonhos.

Nenhuma beleza é demasiada para um sedutor, pois ele a todas submete. Ele as encanta, transmutando-se impressionantemente num similar, ainda que para isso utilize toda sua feiúra. Sua idade, sua roupa, suas posses, seu corpo, sua voz, seu cheiro... Nada é empecilho. Tudo é utilizado como arma de sedução.

Para tudo isso não há fórmulas, cursos, feitiços... Faz parte do seu ser. É atributo, não algo que se lhe tenha sido anexado durante a vida. Seu poder é tamanho que cada palavra não é um afago, é um signo de posse. E nem adianta trocar nomes, usar superlativos, roupas de grife, automóveis caríssimos para se passar por um sedutor. Se alguém acreditar nessas coisas para seduzir, ficará admirado quando um “pé-rapado” tomar seu lugar nos sentidos da pessoa desejada.

Esso vuole, esso seduce, esso ride della vita

Continua... Não sei quando.

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Fragmentos...


Não sei por que chamam os textos minúsculos de fragmentos. Um fragmento é um pedaço. Ora, se um escritor pensou: não quero escrever nada mais, isso é suficiente. Logo, o que escreveu não é um pedaço, é um todo. Há pessoas que não aceitam poucas palavras. Acreditam que boas idéias precisam de muito espaço preenchido por um monte de palavras. É bom lembrar do quanto os ricos pagam por tão pouca comida fina...
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